Crime e Redenção
Pedro Cosme Vieira
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Ver o capítulo anterior (44 - A destruição)
45 – A lei do retorno
Quando
nesse dia a noite caiu, a aldeia do Monte havia centenas de casas e mais de 9000
pessoas mas, quando se fez novamente dia, as casas e currais estavam arrasadas
e as pessoas tinham desaparecido, a maioria morta e incinerada. Naquela manhã
parecia que a destruição seria para todo o sempre, que nunca mais haveria
condições para que as pessoas pudessem voltar à aldeia mas, com o passar do
tempo, talvez porque o massacre tenha sido orquestrado e executado por uma
minoria não representativa do que pensavam as pessoas do Vale ou isso não
passasse de uma desculpa e tivesse sido apenas o passar do tempo, todo começou
a normalizar. Passados apenas alguns meses, quem não conseguiu ou não quis
emigrar para a América voltou à aldeia e começou a reconstruir a sua vida.
Passaram-se
10 anos, depois 20, 30 e mais anos e no Vale foi crescendo a consciência de que
haveria uma responsabilidade colectiva, mesmo por quem ainda nem era nascido
nesse tempo, pelo crime daquela noite. Atendendo a que aquele crime contra a
humanidade nunca poderia ter acontecido, ao longo dos anos a autarquia do Vale
foi ajudando na reconstrução da aldeia do Monte.
O
problema é que a aldeia que outrora era uma comunidade viva, com mil casas
lotadas, transformou-se numa garfadinha de pessoas perdida no meio de um monte.
Como
fase final da reconciliação com o seu passado, no Vale aprovaram a Lei do Retorno,
lei que permite que os descendentes das pessoas que viveram na Aldeia do Monte possam
voltar a viver lá em condições de igualdade com as pessoas do Vale, isto é, sem
mais perseguições nem necessidade de pagamento do foral.
O
mecanismo de naturalização previsto nesta lei á relativamente simples. A primeira
condição é que a pessoa fale, mesmo que com dificuldade, a língua dos seus
antepassados e, a segunda condição, é que tenha algum documento, mais não seja passado
pela confraria americana ou do Monte, a dizer que tem na sua árvore genealógica
antepassados nascidos na aldeia do monte.
Quando
a notícia da Lei do Retorno chegou ao Monte, as poucas mais de 200 pessoas que
lá viviam, ficaram entusiasmadas, viram ali a oportunidade para ressuscitar a
comunidade que estava quase morta e, por isso, enviaram-na logo para a
confraria americana pensando que muitas pessoas quereriam aproveitar a
oportunidade. Mas na América, a lei não foi recebida com muito entusiasmo, é
que, por terem passado tantos anos, as pessoas já se sentiam americana até
porque a maioria já tinha lá nascido. Quem é que, no seu juízo perfeito, iria
querer deixar uma vida confortável na América, os amigos, o emprego e os
familiares, para ir viver no meio de um monte qualquer perdido no meio de
nenhures? Talvez, no máximo, uma meia dúzia de pessoas idosas com uma nostalgia
romântica de voltar ao local da sua origem. No entanto, o tema não deixou de
ser central nas conversas.
–
Essa lei não vai levar a lado nenhum, a Aldeia do Monte é coisa do passado. É
algo que nunca mais pode ser recuperado – disse o Alberto que era o presidente
da confraria. Era neto do António Espírito Santo, bisneto do Alberto que o
Dessilva, enquanto Abel, tinha matado no cimo do monte com uma facada no
coração para poder roubar as ovelhas, crime esse que acabou por dar origem à
comunidade que hoje vive na América, e também neto do Levistone pois um filho
de Levistone casou com uma filha do António. O segredo de que foi o Newman
Dessilva que matou o pai do António ficou com o Jonas, o Dessilva e a Júlia até
ao dia em que morreram.
– Tenho
que te dar razão, apesar de eu ter muitas ligações à nossa aldeia, de me
recordar dos tempos da minha infância, como as coisas estão, a nossa aldeia está
condenada ao desaparecimento. Apesar de viverem lá duas centenas de pessoas, se
nada for feito de radicalmente diferente, daqui a 20 ou 30 anos não vai lá sobrar
ninguém – Disse o Rúben que era a criança filha da Maria José do Zenão que
tinha emigrado, primeiro, para Amesterdão onde aprendeu a arte de ourives e,
depois, para a América para trabalhar na ourivesaria do tio, o Sr. Jonas.
Depois
de o Sr. Jonas morrer, dado que os filhos não se interessavam pelo negócio, a
sua quota na ourivesaria ficou para o Rúben.
O
Rúben já estava velhote pelo que quem estava na ourivesaria era o seu filho
mais novo, o Newman, nome escolhido em homenagem ao Newman Dessilva.
O
Rúben por vezes ia à ourivesaria mas, a maior parte dos dias, passava-os na
confraria onde encontrava os velhos amigos para conversar e para jogar umas
cartas. Hoje de manhã encontrou o Alberto.
–
Repare Sr. Rúben, vamos imaginar que a confraria abraça o projecto de refazer a
comunidade que existia no dia do massacre, vamos supor que decidimos fazer tudo
o que estivesse ao nosso alcance para fazer com que a Aldeia do Monte volte a
ter vida, volte a ter milhares de habitantes. O primeiro problema será saber como
podemos materializar essa vontade, onde é vamos arranjar as pessoas, de que
cartola iremos tirar esses milhares de pessoas!
–
Bem Alberto, no meu tempo havia um pouco mais de 9000 pessoas mas penso que não
é preciso arranjar essas pessoas de um dia para o outro, sei lá, por exemplo,
se fosse ao longo de 30 anos, só seriam precisas 300 pessoas por ano o que já me
parece um número muito mais trabalhável.
– E
acha que 300 pessoas por ano é um número mais trabalhável? O Sr. Rúben
desculpe-me mas não acho um número nada trabalhável. Vamos fazer umas contas
simples para o Sr. Rúben ver que esse número é uma enormidade inatingível. Estão
registadas na confraria pouco mais de 3000 pessoas e temos uma média de 40 nascimentos
por ano. Agora, para podermos arranjar mais 300 pessoas por ano, por cada
criança que nasce, terão que nascer mais 7 crianças e meia, digamos que cada um
dos nossos casal terá que ter, além dos filhos que já tem, mais 15 crianças! O
Sr. Rúben perdoe-me a franqueza, mas isso é totalmente impossível, ninguém vai
ter 15 filhos com o objectivo de os enviar para a Europa. Não é de todo
possível até porque o nosso problema não é a falta de espaço nem de falta de
perspectivas de futuro para as crianças aqui na América, o problema é os pais não
quererem ter esses 15 filhos. Não é possível convencer as pessoas a ter 15
filhos além dos que já têm!
–
Sim, realmente, dito assim já me parece impossível, obrigaria a que cada casal tivesse
17 ou 18 filhos. Tenho que dar a mão à palmatória, tenho que reconhecer que tal
é impossível. E se reduzíssemos esse número para metade? Imaginando que os
casais que vão para a aldeia também irão ter filhos, poderíamos enviar apenas
150 pessoas por ano!
– Apenas
150 por ano? Mesmo assim é impossível, não dá, não dá, não vale a pena desenvolver
mais essa ideia porque não passa de uma ilusão, o Sr. Rúben desculpe mais uma vez
a minha franqueza mas isso é um projecto sem pés nem cabeça, a Aldeia do Monte foi
destruída naquela noite e, agora, está condenada à morte lenta mas total, ponto final. Seria
preciso cada um dos nossos casais ter 10 filhos para, depois, mandar a mairia essa aldeia dos nossos antepassados.
– Realmente,
dito assim, também já me parece impossível. Mas também parecia impossível quando o
Sr. Dessilva disse que 30 casais viriam para a América e, no final, viemos milhares
de pessoas.
–
Não dá Sr. Rúben, um filho dá muito trabalho a ter e a criar, quanto mais, ter e criar
10.
Capítulo seguinte (46 - A técnica)
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