Crime e Redenção
Pedro Cosme Vieira
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Ver o capítulo anterior (45 - A lei do retorno)
46 – A técnica
Tem
que dar – pensou o Rúben – tenho que arranjar uma forma de dar utilidade à lei
do retorno. Para que se deram ao trabalho de fazer a lei do retorno quando
parece evidente ser impossível arranjar pessoas que queiram retornar? Talvez os
do Vale não procurassem mais do que uma forma de redimir o massacre daquela noite
sem, de facto, fazerem nada. Mas as intenções não interessam, o que interessa é
que temos que arranjar uma forma de os ajudar a redimir os seus pecados
passados. O problema é que ninguém vai ter 6 ou 7 filhos para os mandar para a
Europa! – Nesse momento veio-lhe à mente a sua infância, as pregações do padre
que havia lá na aldeia, o Padre Augusto, e que falava com o Espírito Santo – Vai
ter que ser uma coisa assim, vir uma inspiração divina ...
O
Rúben ficou com aquela pergunta na cabeça, como conseguir convencer alguém a criar
e educar filhos para, depois, os enviar para a Europa? Durante os pensamentos,
inclinou a cabeça para o lado e caiu no sono.
–
Sr. Rúben, acorde por favor! – Era o Dr. Cerejeira, um médico já reformado que também
gostava de ir conversar à confraria – Acorde que o sono é o princípio da morte.
O
Dr. Cerejeira tinha sido das primeiras crianças a nascer na América de um casal da aldeia. Sendo muito inteligente, estudou com a
ajuda da confraria e fez-se médico.
– Bom
dia Dr. Cerejeira, eu não estava a dormir, estava apenas a passar pelas
brasas, ainda bem que apareceu pois estou às voltas com essa lei do retorno, o Sr. Dr. já ouviu falar disso?
–
Já, já, quem é que não ouviu falar! Querem remediar o massacre mas, agora que o
mal já está feito, não há nada que possam fazer para o remediar. Se mataram as
pessoas como é que agora as podem trazer de volta à vida?
–
Pensando assim, nunca nenhuma falta poderia ser redimida! Lembre-se que uma
floresta arde e volta a nascer mas com outras árvores. Com os povos passa-se o mesmo, as pessoas morrem mas outras
nascem para ocupar o lugar de quem partiu.
–Até
pode ser, bem sei que o Sr. Rúben tem saudades da infância vivida no meio desse
monte, mas não há nada que, agora, possa trazer aquela aldeia de volta à vida. REceio mesmo que, mais ano menos ano, não haverá uma única pessoas a viver lá.
–
Tenho saudades de ser criança, da beleza da natureza e da camaradagem que lá
existia mas nenhumas saudades da miséria com que vivi a minha infância, de como
os meus pais sofreram para que eu não morresse de fome. Eram tempos muito duros.
–
Acredito que sim, que, mesmo com a miséria, lhe sobrem memórias bonitas da sua
infância mas, agora, mesmo que as condições de vida lá nessa aldeia tenham
melhorado muito, penso que ninguém vai querer partir daqui para voltar a viver
lá.
–
Quando soube da lei, pensei que haveria pessoas interessadas em ir mas, depois
de falar com algumas, tive que me convencer de que não há ninguém, talvez os
velhos como eu mas nós não contamos, seria apenas para irmos ajudar as
estatísticas das mortes. Mas ainda não me dei por derrotado, ainda tenho esperança que possa ser encontrada uma
solução, é que se fizeram a lei para que se pudessem redimir do passado, nós
também temos que fazer um esforçosinho para aproveitarmos esta oportunidade.
Sendo que o Sr. Dr. chegou enquanto eu estava com estes pensamentos, só pode
ser um sinal do Espírito Santo a dizer que este problema se pode resolver com a
tecnologia médica.
–
Mas resolver o problema como?
–
Segundo contas que estive a fazer com o Alberto, para um dia voltar a haver na
Europa tantas pessoas como as que foram mortas, será preciso fazer aparecer a
partir do nada, em termos mitológicas, a partir do barro, 150 pessoas todos os
anos e durante 30 anos. Isso é uma enormidade pois, sendo nós poucos, cada um
dos nossos casais terá que ter 7 filhos além dos que já têm, o que nos pareceu impossível
de todo.
–
Totalmente de acordo, nenhum casal vai querer ter 7 filhos para os mandar para
a aldeia. Mas eu, enquanto enviado do Espírito Santo, com é que entro na equação qeu vai resolver o problema?
–
É que temos que pensar numa forma diferente de fazer essas 150 crianças!
– Que eu saiba, as crianças apenas se
fazem de uma maneira, a maneira tradicional!
–
Sim e não, também existe a medicina, a procriação medicamente assistidas! E se as
crianças que precisamos fossem feitas usando os últimos avanços tecnológicos?
–
Mas isso não resolve nada pois é preciso ter, na mesma, uma mãe que dê a criança
ao mundo e uma família que crie e eduque a criança!
–
Eu estava a pensar em algo mais industrial e menos humano, recolhiam-se óvulos
e espermatozoides dos nossos casais e, depois, arranjavam-se mulheres de
substituição algures num país pobre, talvez em África. Assim, talvez já fosse
possível arranjar as 150 pessoas por ano sem sobrecarregar ninguém, seria
apenas uma aplicação financeira, as pessoas seriam criadas desde pequeninas até
serem adultas com o objectivo específico de irem viver para a nossa aldeia e pagariam uma mensalidade por as termos dado à vida!
–
Sim, em termos técnicos isso é possível mas nunca foi aplicado a essa escala e
com um objectivo dessa natureza. Para ajudar um casal que tem dificuldades
procriativas é uma coisa mas para refazer a população de uma aldeia que foi exterminada
no passado nunca foi sequer imaginado e, muito menos, tentado.
–
Então o Dr. Cerejeira acha que isso é mesmo tecnologicamente possível!
–
Perfeitamente possível, a recolha dos gâmetas, a fertilização, o desenvolvimento
do zigoto até a obtenção dos pré-embriões e, finalmente, a sua posterior
implantação no útero de uma mulher dando origem a uma gravidez são tudo tecnologias
perfeitamente compreendidas e testadas, com já milhares de sucessos. O único
problema é não só a escala como também, em termos éticos, as crianças nascerem
fora de uma família e para dar cumprimeto a um objectivo pré-determinado e que inclui um encargo financeiro.
–
Vamos deixar os problemas éticos para depois pois primeiro tenho que imaginar o
processo produtivo. Recolhiam-se aqui os gâmetas e, depois, enviavam-se para um
país onde seriam feitos os outros procedimentos, apenas teríamos que ter casais que se disponibilizassem
a fazer a doação dos gâmetas!
– Mas
ainda há algumas dificuldades. É que para um casal para ter esses 7 filhos que
pretende enviar para a aldeia, será preciso obter uma média de 80 óvulos por mulher
o que obriga a uns 5 procedimentos de recolha, o que não é nada agradável.
–
Mas então não é um óvulo, uma criança? Para 7 crianças não basta recolher 7 óvulos?
–
Não, nem perto disso, em termos estatísticos, num ciclo de estimulação hormonal
em que se consigam recolher 16 óvulos, 4 vão falhar a fertilizados e outros 4
vão falhar o desenvolvimento pelo que se vão obter apenas 8 pré-embriões. Actualmente,
o processo que vai da recolha até ao pré-embrião tem um sucesso na ordem dos
50%.
–
E daqui nascem 8 crianças!
– Também não pois a implantação tem uma taxa de sucesso relativamente baixa, depois de transferidos
para o útero, em média, são precisos 6 pré-embriões para termos uma criança.
–
Mas isso é uma perda muito grande, perdermos essas crianças todas por falhas
técnicas!
– Talvez
seja por falhas técnicas mas essas perdas também acontecem numa gravidez
natural. De facto, não sabemos quantas falhas são por dificuldades de implantação e quantas são por o pré-embrião ter falhas genéticas.
–Temos
que arranjar forma de reduzir o número de ciclos. E não será possível duplicar os
ovócitos como acontece com os gémeos verdadeiros?
–
Pois, isso até poderá ser tecnicamente possível mas nunca foi testado e até é
proibido. Se a fertilização in vitro
já coloca problemas éticos, muito mais problemas colocará fazer as crianças como
se fossem salsichas, centenas iguais. Até poderia ser possível mas não pode ser
feito, já imaginou saber que foram feitas mais 200 indivíduos geneticamente iguais a si?
–
Isso não me afligiria em nada. Eu sou eu de forma independente dos outros serem
ou não geneticamente iguais a mim, o meu
pensamento e tomada de consciência seriam sempre os meus. Mas eu não estava a
pensar em 200 mas apenas num número que permitisse ter as 7
crianças com apenas um ciclo de recolha, talvez 4 iguais!
– Assim
já é uma ideia mais razoável mas a estatística não funciona bem assim e até talvez
seja possível fazer melhor do que isso, talvez parte das causa da falha na implantação
não sejam erros genéticos e, por isso, a multiplicação dos ovócitos possam permitir que
nasçam crianças que, de outra forma, nunca nasceria. O problema é não haver
dados que permitam calcular quantos ovócitos falham devido a terem erros
genéticos. Sem fazer ensaios, não posso dizer nada mas a ideia já me parece
razoável, talvez nascessem alguns gémeos mas controlávamos esta questão impondo
um número máximo às cópias transferidas, por exemplo, 4 cópias!
– O
Dr. está a ver como isto está a avançar com a sua ajuda? Ainda é capaz de pensar que não foi o Espírito Santo que o enviou? Vamos imaginar que se
conseguiam recolher 16 ovócitos dos quais resultavam 8 ovócitos. Multiplicando
por 4 teríamos 32 que, dividindo por 6, já dava quase 5,5 crianças, muito próximo
do pretendido. Se implantássemos 5 cópias de cada pré-embriões já seríamos capazes de conseguir as 7 crianças
de uma só recolha, o que diz a este meu número?
– Bem,
é tecnicamente possível mas, sem ensaios, não posso garantir nada, tanto pode acontecer
que tenhamos 5 gémos iguais como apenas2 ou 3.
– Já
estou a imaginar todo o processo, recolhem-se aqui os gâmetas, enviam-se para
um sítio qualquer e faz-se lá a fertilização e a multiplicação dos ovócitos e,
depois, os pré-embriões são implantados nas mães de substituição e espera-se que
nasçam as crianças.
–
Gostei muito desta nossa conversa mas a sua continuação tem que ficar para
outro dia porque ainda tenho que ir visitar os meus netos.
–
Não só conto com a continuação desta nossa conversa como já dou como certo que
o Dr. Cerejeira me vai ajudar na elaboração do projecto que hei-de apresentar à
confraria.
– Concerteza
que pode contar com o meu contributo, vou começar já a trabalhar nisso.
Capítulo seguinte (47 - A infância)
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