Crime e Redenção
Pedro Cosme Vieira
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Ver o capítulo anterior (43 - O mistério)
44 – A destruição
–
Mas vocês viram alguma coisa? Viram pessoas mortas, viram feridos, viram o que
fizeram aos mortos?
– Bem,
Sr. Dessilva, de facto não vimos nada disso, nós apenas ouvimos!
–
Diga então homem o que ouviu que já estou a ficar nervoso.
– Ora
então foi o seguinte: Como agora é Verão e os pastos estão muito longe da
aldeia, nós o 5 passamos a noite no monte. Tínhamos as ovelhas cercadas num
redil e estávamos a dormir quando, a meio da madrugada, acordamos com o ecoar de
um grande estrondo que vinha dos lados da aldeia, seguido de tiros. Como se
calhar já disse, do sítio onde estávamos não conseguíamos ver a aldeia mas eu cheguei-me
ali abaixo ao miradouro a ver se conseguia descobrir o que se estava a passar.
–
E viu alguma coisa?
–
Vi mas, como estava noite fechada, não sei bem o que vi. Havia archotes acesos
e pareceu-me ver militares dentro da aldeia. Também ouvi muitos tiros e, agora,
gritos e também o sino e começou a tocar a rebate. Depois, voltei para junto dos
meus companheiros para lhes contar o que tinha visto.
–
Mas então, não viu nenhum morto nem ferido!
–
Não, não vi porque estava muito longe e era noite fechada, só sei que o sino
tocou muito tempo. Quando o sino se calou ficamos esperançados que o ataque
tivesse acabado mas, no dia seguinte, começaram a aparecer aqui no monte
pessoas que, disseram, vinham a fugir da Aldeia, agora está nevoeiro senão via
um dos acampamentos onde estarão mais de 100 pessoas, estão acampadas a uns 3
quilómetros daqui, junto à ribeira. Elas é que referiram o que se tinha passado,
repare, repare, vem ali uma delas, olhe ali! É o Pereira, oh Pereira, anda cá
falar ao Sr. Dessilva, anda cá dizer o que viste!
O
Pereira estava a uma distância de uns 100m, se tanto, e, ouvindo chamar pelo
seu nome e vendo que estava ali o Sr. Dessilva, veio o mais rapidamente que as
pernas o conseguiam fazer.
–
Boa noite Sr. Dessilva – o Sol, no entretanto, já se tinha posto – boa noite, o
Sr. Dessilva nem vai acreditar no que eu lhe vou dizer.
–
Diga lá homem que eu sou só ouvidos!
– Estava
eu a dormir e ouvi um grande estrondo seguido de tiros. Como, ultimamente,
temos tido ataques para roubar ovelhas, pensei logo que fosse mais um mas, era
vez. era diferente porque, em vez de entrarem em silêncio, usaram um bomba para
deitar uma parte do muro abaixo. Depois, mal entraram, começaram aos tiros a
tudo o que mexia, fossem, homens, mulheres ou crianças. Além disso, eram
militares fardados e não ladrões vestidos de preto para não serem vistos.
–
Mas o Pereira conseguiu escapar!
–
Eu e muitas mais pessoas porque, primeiros, com o barulho do rebentamento, dos
tiros e do sino a tocar a rebate fez com que toda a gente se tivesse levantado.
Depois, vendo que esses militares disparavam contra as pessoas, toda a gente
tentou fugir para o mais longe possível, saltar o muro e vir para o monte.
Claro que muitas foram baleadas e morreram a tentar fugir. Se a noite e o
nevoeiro permitiram que os atacantes tivessem chegado à aldeia sem serem
vistos, também permitiram que muitas pessoas tivessem escapado como eu.
– Mas
então o Pereira viu mortos!
–
Se vi, vi centenas e centenas de pessoa a serem abatidas a tiro, caminhei sobre
centenas de cadáveres, eu só escapei entre as balas por sorte do destino e
porque os militares não conseguirem ter poder de fogo suficiente para matar
toda a gente que tentava fugir.
–
Meu Deus, eu não posso acreditar no que me está a dizer, isso não pode ter acontecido!
–
Mas acredite que aconteceu, quem não conseguiu fugir, neste momento está morto.
Eu consegui esgueirar-me pelo meio dos campos, saltar o muro e refugiar-me no
mato mas vi muitas pessoas a cair à minha direita e à minha esquerda. Uma das
que caiu foi a minha mulher e não sei nada das minhas crianças que também devem
estar mortas.
– Então
o Pereira viu os cadáveres?
– Se
vi, como já lhe disse, vi centenas e centenas de cadáveres, centenas de pessoas
baleadas e ainda a gritar por socorro humano e por misericórdia divina.
–
Desculpe mas eu não posso acreditar nisso, vou ter que ver com os meus próprios
olhos. O Pereira disponibiliza-se a vir comigo até um sítio de onde eu possa
ver a aldeia? Não é que eu desconfie do que está a dizer mas estou a rezar a
Deus para que seja mentira, a maior alegria da minha vida seria o Pereira ser
um mentiroso e ter, apenas, sonhado com isso.
–
Sr. Dessilva, eu também queria que assim fosse mas não é. Vamos arrancar já,
vamos usarmos a noite para nos podermos aproximar sem sermos vistos, o Sr.
Dessilva vai ter que vestir um casaco escuro pois, com essa roupa clara, vão
avistá-lo da aldeia, o que pode ser perigoso. . Com a noite e o nevoeiro,
estamos a 4 horas de distância da aldeia, se partirmos agora, teremos tempo
para nos aproximarmos, vermos o mais que conseguirmos ver e ainda voltarmos
antes de ser novamente dia.
–
Vamos então.
Lá
foram o Dessilva e o Pereira. Passado pouco mais de horas de marcha, avistaram
a aldeia no meio do nevoeiro, ainda a um par de quilómetros. O Dessilva tirou a
sua luneta e começou a perscrutar a aldeia à procura de pessoas. Realmente, não
via vivalma, todas as casas estavam destruídas, iluminadas por uns braseiros já
quase apagados. O muro da aldeia também estava, em parte, caído, talvez por
acção da bomba.
–
Pereira, olhe aqui pela luneta, realmente não se vê vivalma e parece que foi
tudo arrasado, nem a igreja escapou, mas como podemos ter a certeza de que
mataram as pessoas?
–
Sr. Dessilva, acredite que quem ficou para trás está morto, apenas escaparam as
pessoas que conseguiram fugir para o monte. Eu penso que esses braseiros
serviram para incinerar os cadáveres porque, enquanto subíamos o monte, começamos
a sentir um cheiro muito forte a carne queimada que penso ter vindo desses
braseiros.
–
Mas também poderia ser a queimar animais, o cheiro da lã queimada é muito
forte! Não será possível que tenham levado as pessoas para o Vale?
– Não
Sr. Dessilva, acredite que não levaram ninguém. Até era possível que tivessem
levado os rapazes para os vender aos turcos como escravos e as raparigas para
abusar delas mas não foi isso que aconteceu. Vamo-nos aproximar um pouco mais que
penso ser seguro pois já não se vê nenhum dos atacantes.
–
Vamos então que também me parece que já não está lá ninguém.
Aqueles
dois homens foram-se aproximando com cautela pois ainda poderia estar alguém à
espreita para os matar mas não havia ninguém. Entraram na aldeia numa parte em
que o muro estava caído e foram caminhando, por entre as casas destruídas, a
caminho dos braseiros.
Os
braseiros eram numas valas com 3 ou 4 metros de largura, escavadas no terreno
inclinado. Assim, eram abertas de um lado e prolongavam-se pelo terreno uns 15 ou
20 metros. Realmente, o braseiro resultava de terem sido feitas fogueiras misturando
as madeiras que saíram da demolição das barracas com os cadáveres dos habitantes
da aldeia. Aqueles braseiros arderam durante dias e dias e, agora que já não havia
mais cadáveres nem madeira para queimar, estavam a chegar ao seu fim. Ainda se viam
ossos humanos vermelhos, cor de brasa.
–
Bem, agora não tenho dúvida de que aconteceu mesmo a destruição da nossa
aldeia, nem a Igreja escapou! Só nos sobra voltar para Norte e começar já a
trabalhar para que as pessoas que estão perdidas pelo monte se possam salvar.
Capítulo seguinte (45 - A lei do retorno)
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