Crime e Redenção
Pedro Cosme Vieira
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Ver o capítulo anterior (2 - O defumadouro)
3 – O desgosto
Os
meses correram rapidamente. Quando o Rúben começou a gatinhar já a Maria Zé
estava à espera de outra criança que nasceu quando a primeira ainda mal caminhava.
Nasceu outro rapazinho, o Simeão, pequenino mas já com muito cabelo preto,
encaracolado. Como no primeiro filho tinha corrido tudo bem, agora já nem se
lembravam de que o menino, um dia, teria de ir ao defumadouro. A criancinha foi
crescendo mas notava-se que, relativamente ao Rúben, havia qualquer diferença.
Chorava muito mais e, a mamar, deixava cair a cabecinha para o lado e para
trás. Também, quando deitado de bruços não conseguia levantar a cabecinha. Mas
não havia de ser nada pois a Tia Júlia tinha garantido que tudo correria pelo
melhor. Garantiu a tia que, com o defumadouro, não iriam ter nenhuma criança
doente para criar.
Quando
o Simeão fez 4 mesinhos, lembraram-se de que o defumadouro estava para a chegar
mas não deram grande importância à questão pois não passaria de mais um bocado
de fumo e de umas rezas. E, realmente, passados alguns dias, lá apareceu em
casa a Tia Júlia, novamente já noite fechada, com o berço velho, o fogareiro, o
carvão, o alecrim, o incenso e a mirra “da Terra Santa”, tudo dentro do saco de
serapilheira. Entrou e, sem mais nada dizer, repetiu que o Francisco tinha que ir
passar a noite a outro lado qualquer mas agora também o mandou levar o Rúben.
Depois, foi ver a nova criancinha. Olhou e repetiu tudo o que tinha feito há pouco
mais de uma ano com o Rúben. Fez com que ele agarrasse os seus indicadores, puxou
pela criancinha mas esta não conseguiu agarra-se. Repetiu a operação e nada.
Pegou na criança pelo corpo e o corpo torceu-se para um lado com a cabeça meio morta.
Deitou-a no chão e chamou, chamou, chamou e a criança mexeu os braços e as pernas
de forma tão descoordenada que não conseguiu levantar a cabeça nem mover o
corpo. “Meu Deus, o que me está a dizer? Será que estou a perceber mal ou estás
mesmo a chamar este anjinho para junto de Ti? Vamos repetir tudo.” Pensou a Júlia
e assim o fez, tornou a envolver os seus indicadores com as mãozinhas
pequeninas do Simeão e tentou levantá-lo mas nada. Pegou nele fazendo de conta
que o queria ver a voar e o corpo continuou mortiço como se fosse de borracha,
com os braços caídos. Voltou a coloca-lo no chão e a chamar por ele, mas não houve
resposta aceitável.
A
criancinha começou a chorar a pulmões cheios. “Maria Zé, prepara-te para o pior
pois estou a ver problemas no horizonte” disse a tia.
“Mas
o que poderá ser o pior? Será que vai haver mais fumarada? Não estou a ver como
a velhota me pode surpreender, está-se mesmo a ver que isto não passa de um
teatro para fazer render ainda mais o peixe, provavelmente da outra vez achou
que 10€ era pouco”, pensou a Maria Zé.
A Tia
Júlia esvaziou a caixa da roupa, meteu a criancinha lá dentro que não parava de
chorar, acendeu o fogareiro e encheu a casa com o fumo do alecrim, do incenso e
da mirra e começou a rezar. “Meu Deus dá-me um sinal a dizer que estou
enganada. Faz, como fizeste ao Lázaro, faz com que a criança ganhe vida nova”. Levantou-se
e tentou que o Simeão agarrasse alguma coisa com as mãozinhas mas não conseguiu.”Vamos
rezar em voz alta” e começaram as duas mulheres a rezar até que o fogareiro
deixou de fumegar. Depois, a Tia Júlia pegou no fogareiro e colocou-o dentro da
caixa da roupa onde estava a criança, tudo tal e qual como já tinha feito com o
Rúben. Ajoelharam-se em frente da caixa e rezaram mais e mais com os olhos
fixos no chão e com as mãos postas. A Maria Zé estava confiante pelo que olhava
mais para as unhas do que ouvia as orações. Passados uns três ou quatro minutos, a Tia Júlia levantou-se
e, debruçando-se sobre a caixa, tentou novamente que a criança agarrasse os
seus polegares mas não houve reacção. Depois, levantou-se e pummm, fechou a
tampa da caixa, com a criança e o fogareiro lá dentro.
A
Maria Zé tinha estado, até aquele momento, totalmente desconcentrada, olhando para
as unhas estragadas e para as mãos calejadas ao mesmo tempo que pensa com os
seus botões que o defumadouro não passava de um ritual pagão para afastar os
maus espíritos, sem qualquer importância, que não compreendia como alguém lhe poderia
dar importância. Mas quando a Tia Júlia fechou a tampa da caixa, aí foi como se
uma bomba tivesse rebentado dentro da sua cabeça.
–
Meu Deus, meu Deus, Tia Júlia o que está
a fazer? – Levantou-se rapidamente e tentou abrir a tampa mas não conseguiu
porque a Tia carregava-a para baixo com ambas as mãos, descarregando todo o seu
peso. Além disso afastava a Maria Zé com o corpo que, apesar de parecer
franzino e gasto, afinal tinha muita força.
– Deus
me acuda, Tia Júlia o que está a fazer? Abra a tampa da caixa que a minha
criancinha vai ...
– Calou
– gritou a Tia Júlia – prometeste que assumirias todas as consequências do trato,
que nada dirias nem nada perguntarias. Porque gritas agora? Será que perdeste a
fé? Aguarda que se faça a vontade do Senhor.
–
Mas, mas, mas, mas, mas, a minha criancinha vai ...
– Calou
– gritou outra vez a Tia Júlia, agora em voz bastante mais alta – a criancinha
vai cumprir o seu fado, vai apenas ser cumprida a vontade que tinhas antes de
ela ter nascido. Vamos fazer o tempo andar para trás, de volta àquele dia em
que me foste pedir ajuda porque não querias ter filhos doentes para criar. Se naquele
dia disseste que não os querias, agora, porque já sabes que uma dessas crianças
é o Simeão, porque te importas tanto com o que lhe possa vir a acontecer? Agora
é tarde, eu disse-te para não teres filhos e insististe, avisei-te que o
defumadouro era terrível e sorriste como se fosse uma brincadeira de crianças. Tornei-te
a avisar e disseste que prometias tudo perante Deus. Agora tens que assumir o
preço dessa tua opção por mais elevado que ele seja.
Houve
uma certa luta física entre as duas mulheres mas em que a Maria Zé acabou por
se deixar derrotar, voltando a ajoelhar-se.
Então, as duas recomeçaram a rezar sem parar “Meu Deus, meu Deus, não abandones
o Simeão, lembra-te do que fizeste ao Lázaro e ressuscita este menino inocente”.
Entretanto, o choro da criança foi-se tornando mais fraquinho até que parou por
completo. “Deve ter adormecido pois Deus não pode ter permitido que tenha
morrido assim sem mais nem menos” pensou a Maria Zé. Foram horas a fio de
oração até que os galos cantaram a anunciar a alvorada. “Vamos ver se Deus fez
o milagre da cura”. Abriram a caixa e lá estava o Simeãozinho, quietinho, parecendo
a dormir, rosadinho como se estivesse vivo mas estava frio, estava morto.
–
Assassina, assassina, assassina do meu Simeãozinho. Vai acabar a arder no fogo
eterno do Inferno porque o crime que acabou de cometer não pode mais ter perdão
de Deus. Matar assim uma criança que não fez mal a ninguém, vai para o Inferno
mas antes há-de apodrecer na cadeia.
Enquanto
a Maria Zé praguejava, a Tia Júlia tapou a cabeça com o lenço preto que apertou
por debaixo do queixo, tirou a criança da caixa de madeira que lhe serviu de
leito da morte e deitou-a no seu berço de verga, meteu a caixa e tudo o mais no
saco e, antes de se escapulir na escuridão, ainda teve tempo para dizer umas
palavras.
– Aguenta
mulher que isso logo passa. Como prometeste, vais manter o bico calado, não
dirás uma única palavra sobre o que se passou esta noite e tudo correrá pelo
melhor. Isto também aconteceu com os teus pais, com os teus avós, com os teus
sogros e com muitas mais gente da nossa aldeia e nunca ninguém abriu o bico. Agora
é preciso pensar nas coisas práticas da vida. Quando te passar essa histeria, vai
falar com a menina Dulcinha, a filha do Sr. Costa, que vai tratar do funeral e resolver
essas complicações todas em que estás a pensar. Vais ver que nada te irá
acontecer, nada.
Capítulo seguinte (4 - A preparação)
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