quarta-feira, 13 de maio de 2015

3 - O desgosto

Crime e Redenção 
Pedro Cosme Vieira
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Ver o capítulo anterior (2 - O defumadouro)




3 – O desgosto
Os meses correram rapidamente. Quando o Rúben começou a gatinhar já a Maria Zé estava à espera de outra criança que nasceu quando a primeira ainda mal caminhava. Nasceu outro rapazinho, o Simeão, pequenino mas já com muito cabelo preto, encaracolado. Como no primeiro filho tinha corrido tudo bem, agora já nem se lembravam de que o menino, um dia, teria de ir ao defumadouro. A criancinha foi crescendo mas notava-se que, relativamente ao Rúben, havia qualquer diferença. Chorava muito mais e, a mamar, deixava cair a cabecinha para o lado e para trás. Também, quando deitado de bruços não conseguia levantar a cabecinha. Mas não havia de ser nada pois a Tia Júlia tinha garantido que tudo correria pelo melhor. Garantiu a tia que, com o defumadouro, não iriam ter nenhuma criança doente para criar.
Quando o Simeão fez 4 mesinhos, lembraram-se de que o defumadouro estava para a chegar mas não deram grande importância à questão pois não passaria de mais um bocado de fumo e de umas rezas. E, realmente, passados alguns dias, lá apareceu em casa a Tia Júlia, novamente já noite fechada, com o berço velho, o fogareiro, o carvão, o alecrim, o incenso e a mirra “da Terra Santa”, tudo dentro do saco de serapilheira. Entrou e, sem mais nada dizer, repetiu que o Francisco tinha que ir passar a noite a outro lado qualquer mas agora também o mandou levar o Rúben. Depois, foi ver a nova criancinha. Olhou e repetiu tudo o que tinha feito há pouco mais de uma ano com o Rúben. Fez com que ele agarrasse os seus indicadores, puxou pela criancinha mas esta não conseguiu agarra-se. Repetiu a operação e nada. Pegou na criança pelo corpo e o corpo torceu-se para um lado com a cabeça meio morta. Deitou-a no chão e chamou, chamou, chamou e a criança mexeu os braços e as pernas de forma tão descoordenada que não conseguiu levantar a cabeça nem mover o corpo. “Meu Deus, o que me está a dizer? Será que estou a perceber mal ou estás mesmo a chamar este anjinho para junto de Ti? Vamos repetir tudo.” Pensou a Júlia e assim o fez, tornou a envolver os seus indicadores com as mãozinhas pequeninas do Simeão e tentou levantá-lo mas nada. Pegou nele fazendo de conta que o queria ver a voar e o corpo continuou mortiço como se fosse de borracha, com os braços caídos. Voltou a coloca-lo no chão e a chamar por ele, mas não houve resposta aceitável.
A criancinha começou a chorar a pulmões cheios. “Maria Zé, prepara-te para o pior pois estou a ver problemas no horizonte” disse a tia.
“Mas o que poderá ser o pior? Será que vai haver mais fumarada? Não estou a ver como a velhota me pode surpreender, está-se mesmo a ver que isto não passa de um teatro para fazer render ainda mais o peixe, provavelmente da outra vez achou que 10€ era pouco”, pensou a Maria Zé.
A Tia Júlia esvaziou a caixa da roupa, meteu a criancinha lá dentro que não parava de chorar, acendeu o fogareiro e encheu a casa com o fumo do alecrim, do incenso e da mirra e começou a rezar. “Meu Deus dá-me um sinal a dizer que estou enganada. Faz, como fizeste ao Lázaro, faz com que a criança ganhe vida nova”. Levantou-se e tentou que o Simeão agarrasse alguma coisa com as mãozinhas mas não conseguiu.”Vamos rezar em voz alta” e começaram as duas mulheres a rezar até que o fogareiro deixou de fumegar. Depois, a Tia Júlia pegou no fogareiro e colocou-o dentro da caixa da roupa onde estava a criança, tudo tal e qual como já tinha feito com o Rúben. Ajoelharam-se em frente da caixa e rezaram mais e mais com os olhos fixos no chão e com as mãos postas. A Maria Zé estava confiante pelo que olhava mais para as unhas do que ouvia as orações. Passados uns  três ou quatro minutos, a Tia Júlia levantou-se e, debruçando-se sobre a caixa, tentou novamente que a criança agarrasse os seus polegares mas não houve reacção. Depois, levantou-se e pummm, fechou a tampa da caixa, com a criança e o fogareiro lá dentro.
A Maria Zé tinha estado, até aquele momento, totalmente desconcentrada, olhando para as unhas estragadas e para as mãos calejadas ao mesmo tempo que pensa com os seus botões que o defumadouro não passava de um ritual pagão para afastar os maus espíritos, sem qualquer importância, que não compreendia como alguém lhe poderia dar importância. Mas quando a Tia Júlia fechou a tampa da caixa, aí foi como se uma bomba tivesse rebentado dentro da sua cabeça.
– Meu Deus, meu Deus, Tia Júlia  o que está a fazer? – Levantou-se rapidamente e tentou abrir a tampa mas não conseguiu porque a Tia carregava-a para baixo com ambas as mãos, descarregando todo o seu peso. Além disso afastava a Maria Zé com o corpo que, apesar de parecer franzino e gasto, afinal tinha muita força.
– Deus me acuda, Tia Júlia o que está a fazer? Abra a tampa da caixa que a minha criancinha vai ...
– Calou – gritou a Tia Júlia – prometeste que assumirias todas as consequências do trato, que nada dirias nem nada perguntarias. Porque gritas agora? Será que perdeste a fé? Aguarda que se faça a vontade do Senhor.
– Mas, mas, mas, mas, mas, a minha criancinha vai ...
– Calou – gritou outra vez a Tia Júlia, agora em voz bastante mais alta – a criancinha vai cumprir o seu fado, vai apenas ser cumprida a vontade que tinhas antes de ela ter nascido. Vamos fazer o tempo andar para trás, de volta àquele dia em que me foste pedir ajuda porque não querias ter filhos doentes para criar. Se naquele dia disseste que não os querias, agora, porque já sabes que uma dessas crianças é o Simeão, porque te importas tanto com o que lhe possa vir a acontecer? Agora é tarde, eu disse-te para não teres filhos e insististe, avisei-te que o defumadouro era terrível e sorriste como se fosse uma brincadeira de crianças. Tornei-te a avisar e disseste que prometias tudo perante Deus. Agora tens que assumir o preço dessa tua opção por mais elevado que ele seja.
Houve uma certa luta física entre as duas mulheres mas em que a Maria Zé acabou por se deixar derrotar, voltando  a ajoelhar-se. Então, as duas recomeçaram a rezar sem parar “Meu Deus, meu Deus, não abandones o Simeão, lembra-te do que fizeste ao Lázaro e ressuscita este menino inocente”. Entretanto, o choro da criança foi-se tornando mais fraquinho até que parou por completo. “Deve ter adormecido pois Deus não pode ter permitido que tenha morrido assim sem mais nem menos” pensou a Maria Zé. Foram horas a fio de oração até que os galos cantaram a anunciar a alvorada. “Vamos ver se Deus fez o milagre da cura”. Abriram a caixa e lá estava o Simeãozinho, quietinho, parecendo a dormir, rosadinho como se estivesse vivo mas estava frio, estava morto.
– Assassina, assassina, assassina do meu Simeãozinho. Vai acabar a arder no fogo eterno do Inferno porque o crime que acabou de cometer não pode mais ter perdão de Deus. Matar assim uma criança que não fez mal a ninguém, vai para o Inferno mas antes há-de apodrecer na cadeia.
Enquanto a Maria Zé praguejava, a Tia Júlia tapou a cabeça com o lenço preto que apertou por debaixo do queixo, tirou a criança da caixa de madeira que lhe serviu de leito da morte e deitou-a no seu berço de verga, meteu a caixa e tudo o mais no saco e, antes de se escapulir na escuridão, ainda teve tempo para dizer umas palavras.

– Aguenta mulher que isso logo passa. Como prometeste, vais manter o bico calado, não dirás uma única palavra sobre o que se passou esta noite e tudo correrá pelo melhor. Isto também aconteceu com os teus pais, com os teus avós, com os teus sogros e com muitas mais gente da nossa aldeia e nunca ninguém abriu o bico. Agora é preciso pensar nas coisas práticas da vida. Quando te passar essa histeria, vai falar com a menina Dulcinha, a filha do Sr. Costa, que vai tratar do funeral e resolver essas complicações todas em que estás a pensar. Vais ver que nada te irá acontecer, nada.

Capítulo seguinte (4 - A preparação)

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