Crime e Redenção
Pedro Cosme Vieira
______________________
Ver o capítulo anterior (5 - A casa)
6 – A confissão
A Maria
Zé chegou à casa paroquial pouco passava das 10h30. Puxou o arame da sineta –
tlim, tlim, tlim – e passado um ou dois minutos apareceu a criada do Sr. Padre,
a Menina Encarnação.
–
Bom dia Sra. Maria José, o que a traz por cá? Vejo que vem de preto pelo que
não deve ser coisa boa.
–
Sabe Menina Encarnação, o meu filho mais pequenino, o Simeão, morreu durante a
noite e eu vinha cá para falar com o Sr. Padre e tratar do funeral. Já havia
alguns dias que estava meio doente, não queria comer, ainda pensei chamar o Sr.
Dr. Acácio mas como pensei que a doença não fosse grave e o dinheiro não gosta
de aparecer lá por casa, adiei a coisa e agora, durante a noite, o meu menino
morreu.
–
Eu não tenho filhos mas toda a mãe quando tem um filho tem que se preparar para
a eventualidade de o perder. A Sr. Maria Zé sabe que a vida é um constante
apegamento às pessoas que amamos e despegamento quando as perdemos. E parece
que Deus vê um certo pecado na felicidade do amor de mãe pois quanto mais
alegria a mãe retira da sua criança, mais sofre quando Deus lha tira.
– É
isso mesmo Menina Encarnação, estou aqui por dentro que não me aguento mas tenho
que ir buscar forças onde as não tenho pois a vida tem que seguir em frente. Eu
estive há pouco na casa do Sr. Costa e a Menina Dulcinha disse-me que se o sino
tocasse hoje de manhã o funeral ainda poderia ser hoje, na missa das 18h. É que
está calor e pode ser uma doença que ponha em causa a saúde pública.
– Eu
imagino o que está a sofrer, imagino que quando morre um filho é um tempo de enorme
desgosto mas, realmente, é preciso tratar das coisas práticas. Entre, entre e
sente-se aqui que o Sr. Padre Augusto vem já, foi há igreja rezar pela salvação
das nossas almas e tratar de uns assuntos de papeladas mas não demora. Entre
que eu vou preparar uma limonada pois, neste tempo de calor, só faz bem e,
depois, vou mesmo dar uma saltadinha à igreja a ver se apresso a coisa.
Naquele
tempo de espera, a Maria Zé reviveu tudo o que se tinha passado na noite
anterior. Como tinha lutado mas sem convicção e rezado mas sem fé na cura e na salvação
do filho. Por causa dessa falta de convicção e por ter feito o contrato com a
Tia Júlia achava-se muito culpada pela morte da criança. Mas, mais grave do que
ter participado na morte, era não estar arrependida. No fundo, no fundo, estava
conformada com o que tinha acontecido e até, em certa medida, contente e aliviada
porque “não podia criar uma criança assim tão doente”. Não tinha orgulho no que
tinha feito mas também não tinha vergonha. E se não estava arrependida como é
que poderia ter o perdão de Deus? Estava mesmo condenada à perdição, afinal a
ideia nobre de ter filhos, de dar cumprimento aos mandamentos de Deus, tinha-a
condenado à perdição eterna, estava agora condenada a arder no eterno fogo do
Inferno.
O
Sr. Padre tanto pode ter demorado muito como pouco porque os pensamentos
fizeram a Maria Zé perder a noção do tempo. Foi então que o Sr. Padre Augusto
entrou na pequena sala de espera.
– Bom-dia
Maria Zé, o que te traz por aqui minha filha? – Disse o Sr. Padre mal entrou na
pequena sala.
– Abençoe-me
Sr. Padre que venho aqui procurar o conforto dos Mandamentos de Deus. É que o
meu filho mais pequenino, o Simeão, morreu-me durante a noite. E também venho pedir
se pode marcar o enterro para ainda hoje, para logo à tarde. Disse-me a Menina
Dulcinha que era o melhor que poderia ser feito por causa do calor que está.
Sabe Sr. Padre, também estou com um peso na consciência porque não fiz o
suficiente para evitar que a minha criança morresse.
– Por
agora deixa-te disso da culpa pois precisamos primeiro tratar dos assuntos
práticos. Oh Encarnação, vai a casa do Sr. Mariazinha dizer-lhe que item que r à igreja
dobrar o sino para anunciar o funeral para ainda hoje e diz-lhe também para
abrir uma cova para uma criança pequena. Depois, quando vieres, preparas a
casula branca pois, sendo o funeral de um anjinho, merece a casula da inocência
e da pureza. Maria José, vamos agora até à igreja para ouvir o que ias dizer
mas agora sob a protecção do segredo da confissão.
A
Igreja distava menos de cem metros da casa paroquial que foram percorridos em
silêncio sepulcral. À frente ia o padre vestido com a batina preta, o chapéu
preto e as mãos entrelaçadas com um terço de pérolas brancas atrás das costas.
A Maria Zé perseguia-o a rezar avé-marias em pensamento. Chegados à sacristia,
o padre meteu a chave à porta e abriu-a – “Aguarda ali que já lá te vou abrir a
porta lateral da igreja” – entrou e fechou a porta novamente com duas voltas de
chave. Ainda demorou lá dentro uns bons minutos, talvez a rezar junto do Santíssimo
a pedir inspiração divina. Depois, abriu a porta lateral – “Entra minha filha,
vamos para o confessionário” – Afinal aquele tempo tinha servido para vestir a
alva.
A
Maria Zé ajoelhou-se – “Abençoe-me Sr. Padre porque pequei por actos e
omissões, por minha culpa, minha única culpa.”
–
Deus te abençoe.
–
Eu não posso ter perdão pois eu sou a responsável, por actos e omissões, pela
morte do meu Simeãozinho.
– Deus
compreende que na miséria em que vivemos nem sempre os país podem dar às suas crianças
uma alimentação boa, Deus sabe e compreende.
– Mas
Sr. Padre, a minha criança não morreu de fome ...
– Eu
sei minha filha, eu sei tudo o que se passou ontem à noite em tua casa, eu sei
que a tua Tia Júlia esteve ontem em tua casa para fazer o defumadouro à tua criança
e que ela não resistiu.
–
Mas como é que o Sr. Padre já sabe disso? Foi o Espírito Santo que lho disse?
–
Não, nada, não foi nada disso, foi uma coisa mais terrena. É que a Júlia antes
de ir a tua casa passou por aqui para rezar e para falarmos um pouco. Quando te
ouvi dizer que a tua criança morreu durante a noite, somei dois com dois e
descobri logo que essa tua criança não resistiu ao defumadouro. Sabes minha
filha, vês que cá na nossa aldeia morrem muitas crianças, em cada 10 que eu
baptizo, morrem umas 3 ou 4 antes de fazerem a comunhão. Deus deve querer que
seja assim, se não é a fome é o tifo, se não é o tifo é o sarampo e se não é
uma coisa nem outra, é o defumadouro, pelo que já estou habituado a estas
tragédias.
–
Mas Sr. Padre, o defumadouro não mata ninguém, o meu outro filhinho, o Rúben, também
teve o defumadouro e não lhe aconteceu nada de mal. Não foi o defumadouro que
matou a minha criança mas antes a Tia Júlia ter fechado a tampa da caixa da
roupa onde tinha metido o meu filho juntamente com o fogareiro em brasa. Foi a
caixa estar fechada que asfixiou a criança e o grave é que eu sabia que a
criança ia asfixiar e não fiz nada para o evitar. Escondi-me atrás de uma
esperança sem sentido de que iria acontecer o milagre da cura.
–Quando
nascemos já sabemos que vamos morrer e se Deus permitiu que isso tivesse
acontecido é porque queria a tua criancinha junto dele, tens que ter paciência.
É sempre triste ver um filho morrer mas são os caminhos do Senhor para ver até
onde vai a tua fé. Para ti é um sofrimento sem igual para para a tua criança,
por esta hora já está no Céu.
–
Mas senhor padre, eu não me fiz entender pelo que vou ter que ser mais clara, a
minha criança morreu porque a Tia Júlia a matou e com a minha conivência. Não
foi Deus que a chamou foi o meter do fogareiro em brasa numa caixa fechada
juntamente com a minha criança. Não foi mais que uma Lei da Natureza, meter a
criança com carvão a arder numa caixa fechada era certo que ela ia morre
asfixiada e eu deixei que isso acontecesse. E isto não pode ter perdão, eu
estou condenada à danação eterna.
–
Mas minha filha vens aqui ser juiz ou ser réu? Vens aqui procurar perdão de
Deus ou condenares-te?
0 comentários:
Enviar um comentário