Crime e Redenção
Pedro Cosme Vieira
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Ver o capítulo anterior (7 - A penitência)
8 – A revelação
Como
a Maria Zé combinou com a Dulcinha que só voltaria a casa quando tudo estivesse
pronto para o funeral, depois da confissão decidiu ir para casa dos pais. Pelo
caminho foi matutando na penitência proposta pelo Sr. Padre Augusto, “Mas se o Simeão
morreu, já não há nada que possa ser feito, nada que o possa trazer de volta à
vida. Por isso, não compreendo como ter mais 4 filhos me pode redimir deste
pecado”. Assim que chegou ao casebre dos pais e viu a mãe à porta, vestida de
preto para marcar o luto, disse “Mãe, o meu Simeão morreu e Deus nunca mo
perdoará”.
–
Minha filha, Deus há-de perdoar-te porque já nada podes fazer para o trazer de
volta à vida. Bem sei que tens o teu coração apertado mas o que lá vai, lá vai.
Vais ver que, com o tempo, tudo passa e tudo esquece.
–
Mas mãe, fui eu que causei, mesmo sem o saber, esta tragédia. Porque ninguém me
avisou de que o defumadouro era isto? Agora, nunca mais poderei ser perdoada
porque o Simeão não pode mais ser trazido à vida.
– Dizes
que ninguém te avisou porque não quiseste ouvir o que a Tia Júlia te disse.
Agora tens que ter pensamentos positivos, fazer com que tudo o que aconteceu no
passado fique no passado. A morte do Simeão já é passado e nada podes fazer
para mudar esse passado. Se o Sr. Padre Augusto diz que a tua redenção passa
por teres mais 4 filhos, só tens que acreditar nas suas palavras e cumprir a
penitência que ele decretou, se estiveste implicada no fim de um cristãozinho, naturalmente
que podes reparar essa perda tendo mais quatro cristãos. Agora pode-te parecer
estranho mas, com o tempo, vais ver que a penitência é justa e equilibrada que mais
não pode ter sido que não uma inspiração do Espírito Santo.
–
Mas mãe, e o sofrimento do Simeãozinho, quem o pode reparar?
– Isso
já sabes que ninguém. A morte não pode ser reparada porque é irreversível mas o
que não tem cura, curado está. E a morte também não é assim tão grave porque
todos nascemos condenados a morrer seja por uma causa ou por outra. Tens é que pensar
que a tua criancinha, mais dia, menos dia, iria morrer da doença e que tu, no
entretanto, não tinhas como a criar. O mais certo era morrer mesmo de fome ou
de tifo e arrastar o teu outro filho Rúben com ele. Agora, tens que olhar para
o futuro e reparar a tua falha junto dos que continuam vivos. Se o Sr. padre
diz que essa reparação passa por teres mais 4 filhos, só tens que lhe dar
cumprimento.
–
Mãe, não me consigo convencer ...
–
Então, vejo-me obrigada a revelar-te um segredo que me acompanha desde há
muitos anos para veres como algo mau pode dar origem a algo bom. Repara bem no
que te vou dizer: apesar de teres 8 irmãos, eu tive mais filhos mas que tive
que matar por terem nascido com a doença.
A
Maria Zé estava a olhar para o chão e, como que ferrada por uma abelha,
levantou rapidamente o olhar – “Eu lembro-me de quando morreu aquela menina pequenina,
também terá sido vitima do defumadouro?”
–
Não, não me estou a referir a menina nenhuma, estou-me a referir ao Joaquim.
– Mas
o Joaquim está vivo, o meu irmão Joaquim está vivo, morra lá ao fundo da aldeia,
ainda esteve em minha casa não faz nem um mês, a mãe só pode estar confundida
ou a querer indrominar-me.
– Não,
não, não estou a confundir, esse Joaquim é outro. O que estou a falar já morreu,
podes pedir ao Padre Augusto para te mostrar o assento do baptizado. Era um
menino tão bonito, tão vivinho, com um olhar felino, era igualzinho ao teu pai.
Nunca me passou pela mente que tivesse a doença mas, com o passar dos meses,
foi ficando para trás, não se desenvolvendo como deveria ser. Vivia com o meu
coração tão apertado porque pouco antes tinha acontecia uma tragédia à Júlia de
que não te posso falar.
– Sabe
mãe, eu sei dessa tragédia porque há pouco o Padre Augusto contou-ma e foi
mesmo terrível.
–
Pois então já deves imaginar o meu aperto. Quando comecei a desconfiar de que
alguma coisa estava mal, fui consultar o Dr. Acácio que me disse logo “Tenho
más notícias, a tua criança tem a doença. Custa-me ser eu a dizer-to e
aperta-me o coração ver o teu sofrimento mas não há nada que a medicina possa
fazer”. Fiquei arrasada, gritei, chorei, andei por esses montes desorientada. Como
não saia da minha mente o que tinha acontecido à minha irmã, à tua Tia Júlia, fiquei
tomada pelo medo de ver o teu pai a ser levado à loucura. Naquele tempo a
miséria era ainda pior do que agora pelo que sabia que tinha que ser eu a
resolver o assunto pois os homens dizem-se muito fortes mas, de facto, não têm
fibra. Não disse nada a ninguém, pensei toda a noite no que haveria de fazer e,
pela manhã, conclui que tinha que devolver o Joaquim ao Criador.
–
Mas então, quer dizer que a Tia Júlia matou esse Joaquim da mesma forma que
matou o meu Simeão?
–
Não digas que a tua tia matou o Simeão pois ele morreu por causa da doença e muito
menos teve algo a ver com o que aconteceu ao Joaquim. Realmente falava-se num
defumadouro milagroso mas eu não acreditava em nada disso e, além do mais, não
sabia quem o fazia. Naquele tempo eu era uma mulher tesa, não era mulher para
empurrar para os outros o que tinha que ser feito por mim. De manhã cedo peguei
no gigo com a roupa suja, pousei o teu irmão em cima, meti tudo à cabeça e fui
ao ribeiro como quem vai lavar a roupa. Fui muito cedo para que não estivesse
ninguém por lá. Quando cheguei ao ribeiro, peguei no teu irmão, virei-o de
barriga para baixo e mandei-o à água, sempre a empurrar para baixo para que não
viesse ao de cima.
–
Ai mãe que coisa terrível me está a dizer, eu nem quero acreditar que isso
aconteceu mesmo.
–
Foi isso mesmo, afoguei-o com as minhas próprias mãos. O coitadinho ainda se debateu
debaixo de água, lutou para salvar a sua tenra vida mas eu não o larguei. Eu rezava
a pedir perdão pelo que estava a fazer mas aquilo tinha mesmo que ser feito. Foi
uma questão de um minuto mas que me pareceu uma eternidade. Depois, foi ao
fundo e eu fui ainda lavar umas peças de roupa de forma a ter a certeza de que
a criança tinha sido devolvida ao Criador.
–
Mãe, não conte mais que isso é terrível de mais, é de uma insensibilidade
extrema, matar o filho com suas próprias mãos ...
–
Não, tu tens que ouvir porque pensas que as coisas se resolvem por si, que
caiem do Céu sem mais nem menos, que chamas alguém para fazer o que tu deverias
fazer e depois sais a gritar que assassinaram a tua criança. Depois de calcular
que a criança já estaria definitivamente morta, desatei a correr em direcção às
casas a gritar “Socorro que a minha criança caiu ao rio”. Corri como uma
desalmada com a esperança de que acontecesse um milagre que sabia ser
impossível mas os milagres são isso mesmo, a alteração das Leis da Natureza
criadas por Deus. Antes que chegasse às casas já as pessoas vinham de lá a
correr “Onde caiu a criança” e eu apontei para o local onde a tinha afogado. Quando
as pessoas a descobriram, a corrente já a tinha arrastado uns 20 metros.
Gritavam “Rápido que ainda pode estar viva” mas eu sabia que já estava morta e
bem morta. Houve uma pessoa que se atirou à água e lhe aplicou respiração
boca-a-boca mas a criança não reagiu, estava mesmo morta. Alguém foi, no
entretanto, chamar o Dr. Acácio que, quando chegou, disse logo que não havia
nada a fazer. Chamou-me ao lado para me dizer em voz baixa “Eu não imaginei que
isto acontecesse assim tão rápido e desta forma tão desumana, nunca pensei que
fosses capaz desta atrocidade”.
– Mas
mãe ...
– Eu
digo-te o que lhe disse “Apenas corrigi o erro da Natureza. Se calhar pensou
que eu era como a minha irmã, mulher de ficar à espera que alguém resolvesse os
seus problemas, mas eu sou diferente, faço logo o que tem que ser feito, agora
que está feito, acabou-se o problema.”
–
Mas mãe, isso que fez não pode ter mais perdão. Não há nada que possa ter feito
que reparasse esse pecado.
–
Ai não, espera então até saberes a verdade toda e só depois é que podes dizer
se eu fiz bem ou mal.
Capítulo seguinte (9 - A substituição)
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