domingo, 31 de maio de 2015

8 - A revelação

Crime e Redenção 
Pedro Cosme Vieira
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Ver o capítulo anterior (7 - A penitência)  


8 – A revelação 
Como a Maria Zé combinou com a Dulcinha que só voltaria a casa quando tudo estivesse pronto para o funeral, depois da confissão decidiu ir para casa dos pais. Pelo caminho foi matutando na penitência proposta pelo Sr. Padre Augusto, “Mas se o Simeão morreu, já não há nada que possa ser feito, nada que o possa trazer de volta à vida. Por isso, não compreendo como ter mais 4 filhos me pode redimir deste pecado”. Assim que chegou ao casebre dos pais e viu a mãe à porta, vestida de preto para marcar o luto, disse “Mãe, o meu Simeão morreu e Deus nunca mo perdoará”.
– Minha filha, Deus há-de perdoar-te porque já nada podes fazer para o trazer de volta à vida. Bem sei que tens o teu coração apertado mas o que lá vai, lá vai. Vais ver que, com o tempo, tudo passa e tudo esquece.
– Mas mãe, fui eu que causei, mesmo sem o saber, esta tragédia. Porque ninguém me avisou de que o defumadouro era isto? Agora, nunca mais poderei ser perdoada porque o Simeão não pode mais ser trazido à vida.
– Dizes que ninguém te avisou porque não quiseste ouvir o que a Tia Júlia te disse. Agora tens que ter pensamentos positivos, fazer com que tudo o que aconteceu no passado fique no passado. A morte do Simeão já é passado e nada podes fazer para mudar esse passado. Se o Sr. Padre Augusto diz que a tua redenção passa por teres mais 4 filhos, só tens que acreditar nas suas palavras e cumprir a penitência que ele decretou, se estiveste implicada no fim de um cristãozinho, naturalmente que podes reparar essa perda tendo mais quatro cristãos. Agora pode-te parecer estranho mas, com o tempo, vais ver que a penitência é justa e equilibrada que mais não pode ter sido que não uma inspiração do Espírito Santo.
– Mas mãe, e o sofrimento do Simeãozinho, quem o pode reparar?
– Isso já sabes que ninguém. A morte não pode ser reparada porque é irreversível mas o que não tem cura, curado está. E a morte também não é assim tão grave porque todos nascemos condenados a morrer seja por uma causa ou por outra. Tens é que pensar que a tua criancinha, mais dia, menos dia, iria morrer da doença e que tu, no entretanto, não tinhas como a criar. O mais certo era morrer mesmo de fome ou de tifo e arrastar o teu outro filho Rúben com ele. Agora, tens que olhar para o futuro e reparar a tua falha junto dos que continuam vivos. Se o Sr. padre diz que essa reparação passa por teres mais 4 filhos, só tens que lhe dar cumprimento.
– Mãe, não me consigo convencer ...
– Então, vejo-me obrigada a revelar-te um segredo que me acompanha desde há muitos anos para veres como algo mau pode dar origem a algo bom. Repara bem no que te vou dizer: apesar de teres 8 irmãos, eu tive mais filhos mas que tive que matar por terem nascido com a doença.
A Maria Zé estava a olhar para o chão e, como que ferrada por uma abelha, levantou rapidamente o olhar – “Eu lembro-me de quando morreu aquela menina pequenina, também terá sido vitima do defumadouro?”
– Não, não me estou a referir a menina nenhuma, estou-me a referir ao Joaquim.
– Mas o Joaquim está vivo, o meu irmão Joaquim está vivo, morra lá ao fundo da aldeia, ainda esteve em minha casa não faz nem um mês, a mãe só pode estar confundida ou a querer indrominar-me.
– Não, não, não estou a confundir, esse Joaquim é outro. O que estou a falar já morreu, podes pedir ao Padre Augusto para te mostrar o assento do baptizado. Era um menino tão bonito, tão vivinho, com um olhar felino, era igualzinho ao teu pai. Nunca me passou pela mente que tivesse a doença mas, com o passar dos meses, foi ficando para trás, não se desenvolvendo como deveria ser. Vivia com o meu coração tão apertado porque pouco antes tinha acontecia uma tragédia à Júlia de que não te posso falar.
– Sabe mãe, eu sei dessa tragédia porque há pouco o Padre Augusto contou-ma e foi mesmo terrível.
– Pois então já deves imaginar o meu aperto. Quando comecei a desconfiar de que alguma coisa estava mal, fui consultar o Dr. Acácio que me disse logo “Tenho más notícias, a tua criança tem a doença. Custa-me ser eu a dizer-to e aperta-me o coração ver o teu sofrimento mas não há nada que a medicina possa fazer”. Fiquei arrasada, gritei, chorei, andei por esses montes desorientada. Como não saia da minha mente o que tinha acontecido à minha irmã, à tua Tia Júlia, fiquei tomada pelo medo de ver o teu pai a ser levado à loucura. Naquele tempo a miséria era ainda pior do que agora pelo que sabia que tinha que ser eu a resolver o assunto pois os homens dizem-se muito fortes mas, de facto, não têm fibra. Não disse nada a ninguém, pensei toda a noite no que haveria de fazer e, pela manhã, conclui que tinha que devolver o Joaquim ao Criador.
– Mas então, quer dizer que a Tia Júlia matou esse Joaquim da mesma forma que matou o meu Simeão?
– Não digas que a tua tia matou o Simeão pois ele morreu por causa da doença e muito menos teve algo a ver com o que aconteceu ao Joaquim. Realmente falava-se num defumadouro milagroso mas eu não acreditava em nada disso e, além do mais, não sabia quem o fazia. Naquele tempo eu era uma mulher tesa, não era mulher para empurrar para os outros o que tinha que ser feito por mim. De manhã cedo peguei no gigo com a roupa suja, pousei o teu irmão em cima, meti tudo à cabeça e fui ao ribeiro como quem vai lavar a roupa. Fui muito cedo para que não estivesse ninguém por lá. Quando cheguei ao ribeiro, peguei no teu irmão, virei-o de barriga para baixo e mandei-o à água, sempre a empurrar para baixo para que não viesse ao de cima.
– Ai mãe que coisa terrível me está a dizer, eu nem quero acreditar que isso aconteceu mesmo.
– Foi isso mesmo, afoguei-o com as minhas próprias mãos. O coitadinho ainda se debateu debaixo de água, lutou para salvar a sua tenra vida mas eu não o larguei. Eu rezava a pedir perdão pelo que estava a fazer mas aquilo tinha mesmo que ser feito. Foi uma questão de um minuto mas que me pareceu uma eternidade. Depois, foi ao fundo e eu fui ainda lavar umas peças de roupa de forma a ter a certeza de que a criança tinha sido devolvida ao Criador.
– Mãe, não conte mais que isso é terrível de mais, é de uma insensibilidade extrema, matar o filho com suas próprias mãos ...
– Não, tu tens que ouvir porque pensas que as coisas se resolvem por si, que caiem do Céu sem mais nem menos, que chamas alguém para fazer o que tu deverias fazer e depois sais a gritar que assassinaram a tua criança. Depois de calcular que a criança já estaria definitivamente morta, desatei a correr em direcção às casas a gritar “Socorro que a minha criança caiu ao rio”. Corri como uma desalmada com a esperança de que acontecesse um milagre que sabia ser impossível mas os milagres são isso mesmo, a alteração das Leis da Natureza criadas por Deus. Antes que chegasse às casas já as pessoas vinham de lá a correr “Onde caiu a criança” e eu apontei para o local onde a tinha afogado. Quando as pessoas a descobriram, a corrente já a tinha arrastado uns 20 metros. Gritavam “Rápido que ainda pode estar viva” mas eu sabia que já estava morta e bem morta. Houve uma pessoa que se atirou à água e lhe aplicou respiração boca-a-boca mas a criança não reagiu, estava mesmo morta. Alguém foi, no entretanto, chamar o Dr. Acácio que, quando chegou, disse logo que não havia nada a fazer. Chamou-me ao lado para me dizer em voz baixa “Eu não imaginei que isto acontecesse assim tão rápido e desta forma tão desumana, nunca pensei que fosses capaz desta atrocidade”.
– Mas mãe ...
– Eu digo-te o que lhe disse “Apenas corrigi o erro da Natureza. Se calhar pensou que eu era como a minha irmã, mulher de ficar à espera que alguém resolvesse os seus problemas, mas eu sou diferente, faço logo o que tem que ser feito, agora que está feito, acabou-se o problema.”
– Mas mãe, isso que fez não pode ter mais perdão. Não há nada que possa ter feito que reparasse esse pecado.

– Ai não, espera então até saberes a verdade toda e só depois é que podes dizer se eu fiz bem ou mal.

Capítulo seguinte (9 - A substituição)

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