Crime e Redenção
Pedro Cosme Vieira
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Ver o capítulo anterior (8 - A revelação)
9 – A substituição
A
mãe continuou.
–
Eu sentia uma revolta interior que não parecia poder ter fim. Não compreendia porque
Deus me tinha feito tamanha maldade. Ai, a tua avó disse que aquela revolta
passaria se eu me fosse confessar, que o meu problema não era diferente do das
outras pessoas e que o Padre Augusto, falando com o Espírito Santo, encontraria
uma solução. E eu assim o fiz, um dia fui pedir ao Padre Augusto para me
confessar mas a coisa não foi fácil porque eu não aceitava o que Deus me tinha
feito. Cheguei lá e disparei logo “Sr. Padre, eu afoguei o meu filho, ele tinha
a doença e eu tinha que olhar primeiro pelo meu marido e pelos meus outros
filhos, se Deus não gosta é problema Dele.” Mas o Padre respondeu deferente do
que eu tinha antecipava, em vez de me recriminar, foi compreensivo, “Minha
filha, eu compreendo o teu desespero, sabes que fizeste mal, que quebraste os
mandamentos mas, ao menos, estás arrependida”. O problema é que eu não estava
arrependida, nem um bocadinho pelo que voltei ao ataque: “Não, nem pense nisso,
nem acho que fiz mal nem estou arrependida do que fiz. Quem deveria estar
arrependido era o Sr. Padre que me obrigou a ter filhos quando já sabia que
poderiam nascer doentes e, depois, Deus pois tinha o poder de o evitar e não o
fez. Afoguei-o e, se fosse hoje, tornava a afogá-lo, não me arrependo de nada, de
nada mesmo. Bem sei que me vai dizer a mesma lengalenga que disse à minha irmã
Júlia, mas não vale a pena perder o seu tempo porque já basta a miséria a que Deus
me condenou. Como sei que não me vai dar absolvição, o melhor é mandar-me já
embora.”
–
E, então, a mãe ficou com a sua alma perdida para todo o sempre!
––
Realmente o Padre Augusto não me deu a absolvição. Disse “Como não te mostras
arrependida, tenho que aguardar pela inspiração do Espírito Santo. Por agora, vais
ali ao altar rezar três Avé-Marias e um Padre-Nosso pela alma da tua criança e
vai-te em paz que eu depois digo-te o que o Espírito Santo me disser.” Eu
fui-me embora convencida de que nunca mais teria perdão e, por isso, deixei
mesmo de aparecer à missa. Já que a minha alma estava perdida, seria um
perdição completa.
–
Mas agora a mãe vai à missa!
–
Exactamente porque, passados uns dias, o Padre Augusto apareceu aqui em casa,
entrou de mansinho por essa mesma porta e disse “Estive a ler, rezar e meditar
à espera da inspiração do Espírito Santo e hoje essa inspiração chegou. Agora,
espero que aceites a penitência que terás que cumprir para que Deus te perdoe.”
Eu não acreditei que viesse dali nada de surpreendente mas decidi-me a ouvir ouvi
calada, a ver o que o Padre ia dizer. Eu nem acreditava que o Espírito Santo tivesse
falado com o Padre Augusto quanto mais que o Espírito Santo poderia ter
encontrado uma solução para a minha alma perdida. “Afogaste a tua criança
porque não querias sofrer o que a tua irmã sofreu, mas agora também vais ter que
sofrer mas de forma diferente, de uma forma mais produtiva. Para ultrapassares
esse teu pecado, essa tua monstruosidade da qual dizes não teres sido tocada
pelo arrependimento, vais cumprir o mesmo que os outros, nem mais nem menos,
pois se não estás arrependida é porque Deus não o quis, vais ter que ter mais 4
filhos. No fundo, o Espírito Santo fez-me ver que o não teres sido tocada pelo
arrependimento é, já de si, uma penitência muito dura pelo que não te pode ser
exigido mais do que é exigido aos outros, aos que se arrependem. Vais à igreja
e prometes perante Deus que vais cumprir esta penitência e serás perdoada, a
tua alma votará ao caminho da salvação, assim me disse o Espírito Santo e assim
será.”
– Mas
a mãe disse que não, sabendo que eles poderiam nascer doentes, a mãe não podia aceitar
ter mais filhos. Eu também disse que ia ter mais 4 filhos mas não estou a
pensar em cumprir a promessa!
– Realmente,
na altura eu tinha decidido que o melhor era não ter mais filhos mas, se o próprio
Espírito Santo tinha dito ao Padre Augusto que eu ficaria perdoada se tivesse
mais 4, eu só tive que cumprir a minha penitência. E tu também o terás que
fazer, se prometeste perante Deus, tens que o cumprir.
–
Teve então mais filhos?
– Claro
que tive, então se tens 8 irmãos é porque eu tive filhos. Repara as voltas que
o destino dá, passado um ano tive um filho rapaz a que dei o nome de Joaquim, é
este o irmão a que te referes, dei-lhe o mesmo nome para que mais ninguém se
lembrasse de que tive outro que morreu. Depois tive outro rapaz e o terceiro
foi uma rapariga, nasceste tu.
– Eu?
–
Sim, tu. Agora pensa bem, tu apenas nasceste porque eu matei o Joaquim e o Padre
Augusto ou o Espírito Santo, nem sei bem quem, me aplicou como penitência eu
ter mais 4 filhos. Se não fosse eu ter matado o Joaquim, tu nunca terias
chegado a nascer, terias sempre ficado no céu dos pardais, perdida no ventre da
galinha. Tu fazes parte da minha redenção.
A
Maria Zé ficou calada, a pensar, sem querer acreditar, “Se não fosse a morte desse
Joaquim, eu nunca teria nascido. Foi preciso a minha mãe matar o meu irmão para
que eu pudesse estar viva. Eu sempre pensei que tinha nascido da vontade dos
meus pais quando, afinal, nasci para redimir um pecado hediondo.”
–
Agora já estás calada mas vais ter que dizer alguma coisa. Diz lá se fiz bem ou
mal, vamos fazer o tempo andar para trás, para aquele minuto em que eu estava a
afogar o teu irmão Joaquim com as próprias mãos, naquele minuto o que me dirias?
Mata-o e faz com que eu nasça ou salva-o e deixa-me no céu dos pardais? Vá lá, ainda
há pouco estavas com tantas certezas, responde-me agora, fiz bem ou fiz mal?
– Bem,
agora já não sei, é um choque saber que nasci porque a mãe matou esse meu irmão.
Agora, eu ter que dar a minha vida em troca da desse meu irmão que nem cheguei
a conhecer? Eu quero dizer que, nesse minuto, diria “Salva-o” mas amo a minha
vida demais para o garantir que o diria mesmo.
– Então
agora já não és tão rápida a julgar-me, perdeste o pio?
– Não
é isso, é que fiquei confusa por um mal dar origem a um bem, a morte de alguém
ter dado origem à minha vida. Mãe, tenho que aceitar que, pela minha parte, fez
bem porque eu não trocaria a minha vida pela de mais ninguém. E, além do mais, a
sua vida teria sido de sofrimento e curta.
– Então
já me estás a dar razão?
– Em
parte sim. Mas, pensando agora no facto de a penitencia a ter obrigar a ter 4
filhos e de ter tido mais, talvez eu não resulte apenas desse seu crime, talvez
eu resulte da vontade de Deus.
–
Pois foi, tive mais filhos mas a causa continuou a ser a maldita doença. É que,
depois de nasceres, tive a quarta criança da penitência, a Catarina. Senti-me
finalmente redimida do meu pecado e o Padre Augusto também. Disse-me ele que,
depois do que tinha acontecido à Júlia, também se sentia mais aliviado por,
comigo, tudo ter corrido pelo melhor. Fez um baptizado especial, com cantoria e
sermão e até me ajudou nos bolinhos de bacalhau e no vinho. Foi uma festa
bonita de que não te lembras porque eras muito pequenina, ainda mal andavas.
– Não
mãe, eu lembro-me mesmo da minha irmã Catarina pois ainda é viva ... ou será
que era outra e deu o mesmo nome a esta que eu conheço?
–
Pois foi. Como já tinha tido os 4 da penitência, com os teus dois irmão mais
velho, já somava 6 crianças para criar pelo que, na altura, não pensava mesmo ter
mais filhos. Já tinha tido mais do que pensava ser possível criar com os poucos
rendimentos que tínhamos mas a maldição não mo permitiu. Com o passar dos
meses, a Catarina tornou-se cada vez mais parecida com o Joaquim de forma que
fui mostrá-la ao Dr. Acácio que empatou, engoliu em seco e apenas disse “Está
um pouco atrasada para a idade mas há crianças mais atrasadas e outras mais
adiantadas que não deixam de ser normais”. Vi logo que ele tinha medo que eu
lhe fizesse o mesmo que tinha feito ao outro. Esperei um mesito, cheia de
esperança de que não fosse a doença mas, como com o passar do tempo a criança ia
ficando cada vez mais atrasada, um dia enchi-me de coragem e, de manhã cedo, apliquei-lhe
o mesmo tratamento que tinha aplicado ao outro, levei-a até ao ribeiro e
afoguei-a. Por ser a segunda criança a morrer-me nas mãos, as pessoas pareceram
ficar meio desconfiadas mas ninguém disse nada porque, no fundo, compreendiam o
que se tinha passado. Apenas o teu pai, depois do funeral, chegou a casa um
bocado tocado pelo vinho e disse-me “Mulher, uma criança à tua guarda morrer
afogada é um acidente mas duas já me parece desmazelo”. Eu só lhe disse
“Preferias que te acontecesse o mesmo que aconteceu ao teu primo, ao marido da minha
irmã Júlia?”. Calou-se até hoje. Depois, eu já sabia que tinha que começar tudo
de novo, aceitei nova penitência, mais 4 filhos para substituir a que tinha
matado. Parecia que Deus se estava a rir de mim, quando estava quase livre,
atacou-me outra vez mas eu não dei parte de fraca, virei-me para Deus e disse-Lhe
“Não penses que vou desistir, hei-de cair e tornar a levantar-me vezes sem
conta. Se a penitência é ter filhos, toca a ter filhos mas, aviso desde já, se
mos mandares avariados devolvo-Tos mais depressa do que o Diabo pisca o olho.
Não vou quebrar.” Na altura eu tinha 30 anos, 5 filhos vivos para sustentar e
mais 4 para fazer nascer. Era muita carga para uma família que vivia na maior
das pobrezas mas eu só pensava “Mais vale um pobre vivo que um rico morto”. A
primeira criança desta segunda penitência nasceu saudável mas a segunda também
precisou do tratamento. Como ainda me faltava cumprir duas crianças, o padre
Augusto disse-me “O Espírito Santo sabe que já sofreste muito pelo que, por
esta, faz-te um desconto” e só me obrigou a ter mais uma criança a somar às 2
que ainda me faltavam. Como estas 3 crianças nasceram saudáveis, fiquei-me
pelas 9 que tenho vivas mais as 3 que afoguei. E, no fim, Deus ajudou-me
porque, mesmo com muita fominha, sobreviveram todas.
–
Mas mãe, estou a ver que é isso que me vai acontecer. Agora tenho que ter mais
4 mas, como um deles pode nascer doente, depois são mais 4 e mais 4 até não ter
mais fim.
–
Não filha, também não exageremos. Pelo que eu sei, quando a pessoa chegar a 12 filhos,
o Padre Augusto diz “Já tiveste tantos como Jacob” e fica-se por ali. Como vês,
eu tive 12 e fiquei-me por ali. Foram muitos mais do que eu queria ter quando
me casei, tinha pensado ter 2 ou 3 filhos, mas o destino obrigou-me a criar 9 e
a ter que afogar 3 com as minhas próprias mãos. Foi uma vida muito difícil mas
não me arrependo de nada do que fiz porque considero que foi tudo vontade de
Deus a quem agradeço tudo o que tenho. Vivi muitos dias de fome e de frio, muito
castigada pela Natureza e por Deus mas nunca quebrei a minha força de viver.
Apenas posso garantir que, se fosse hoje, tornaria a afogar os que afoguei e a
criar os que criei. Espero que a história da minha vida te tenha feito ver que
a morte do teu Simeão não foi nada que já não tenha acontecido a outras pessoas,
não é mais que o preço que temos que pagar para sermos diferentes e, quando
tiveres as tuas 4 crianças da penitência, vais ver que valeu a pena. Agora vou
acabar de fazer o almoço que esta conversa abriu-me o apetite.
A
Maria Zé ficou a pensar. Se a mãe não tivesse, há vinte e tal anos, afogado o tal
Joaquim, hoje, nem ela nem os irmãos mais novos estariam vivos. Se uma vida não
tem preço como se poderia comparar a vida das três crianças doentes que
morreram afogados com as vida dos 7 saudáveis que nasceram para os substituir?
Parecia-lhe mesmo uma comparação impossível de fazer até porque era uma das 7
crianças que nasceram em substituição das que foram “devolvidas ao Criador”
pela mãe.
Capítulo seguinte (10 - O almoço)
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