Crime e Redenção
Pedro Cosme Vieira
______________________
Ver o capítulo anterior (10 - O almoço)
11 – A multiplicação
O Padre Augusto sentia-se obrigado a dizer aos seus paroquianos que tinham que
dar cumprimento ao mandamento divino “Crescei, multiplicai-vos e povoai o Mundo”
mesmo que as crianças, se não morressem ainda pequeninas da doença e por causa
da fome, estivessem condenadas a uma vida de trabalho penoso, perseguição e miséria.
Por esse mandamento ter repetidamente resultado em tragédia, depois do almoço,
contrariamente à habitual recolha para meditação, decidiu ir conversar um pouco
com o Dr. Acácio sobre o que a Ciência tinha a dizer sobre o assunto. Pôs o seu
chapéu preto e lá foi rua fora pelos caminhos estreitos da aldeia vestido com a
batina preta que esvoaçava ao vento, absorvido pelos seus pensamentos. “A sua bênção
Sr. padre” – dizia quem passava a quem o padre fazia o sinal da cruz com a mão
direita e respondia “Dominus vobiscum”.
Depois de uns minutos de caminhada, chegou ao consultório do Dr. Acácio, bateu
à porta que estava aberta e entrou.
– Salve – o Padre Augusto gostava muito de
usar o latim.
–
Boa tarde Sr. Padre, entre, entre que ainda estou a pensar naquela criancinha.
Coitada dela e da mãe pois também deve ser terrível ver um filho tão pequeno
morrer naquelas circunstâncias. Com esta idade habituei-me a estas tragédias que
estão sempre a acontecer mas causa-me sempre algum desconforto. Quando era mais
novo tinha relutância em passar a certidão de óbito com uma causa de morte inventada
mas agora, vendo o sofrimento da mãe, deixei-me disso, além do mais, em termos
médicos não havia nada que pudesse ser feito. E, no fundo, morrer por causa da fome
ou do tifo não é diferente de morrer por causa dessa doença maldita, é tudo morrer.
Agora que já vi tanta coisa, preocupo-me mais com a mãe e com as crianças que
ficam vivas, saber se têm o que comer e, por isso tudo, mais uma vez passei a
certidão de óbito a dizer que tinha sido um desarranjo intestinal, a nossa
conhecida Febre Tifóide.
– Também
acho que fez bem. Acaba por ser contrário ao mandamento “Não matarás” mas isso
são contas a acertar um dia no futuro directamente com Deus. Eu também vim cá
hoje por causa da morte daquela criança. Uma morte é sempre uma morte mas a de
uma criança e por acção da própria mãe é muito mais terrível. O problema maior
é que também me sinto responsável por estas mortes pois, mesmo sabendo que os filhos
destes pobres estão condenados à perseguição, à miséria e ao risco da doença,
estou obrigado pelas Sagradas Escrituras a transmitir-lhes uma mensagem de
esperança, tenho que lhes dizer que têm que pôr o futuro nas mãos de Deus, que
tudo vai correr pelo melhor e que pecam gravemente se decidirem não ter filhos.
Depois, quando uma criança morre porque nasceu com a doença, não me sobra outro
remédio que não seja dar a absolvição a quem a pedir e carregá-los com mais do
mesmo, mais “Crescei e multiplicai-vos”.
–
Sim Sr. Padre, em termos bíblicos a sua estratégia não é errada de todo, matam
um mas têm que ter três ou quatro para que o saldo, na óptica das almas, seja
positivo.
–
Pois é essa a ideia que retiro das Sagradas Escrituras, que é melhor nascerem 4 e morrem 1 do que nascer apenas 1. Bem sei que esta moral pode cair no pensamento maquiavélico de que os fins justificam os meios mas não vejo que alternativa tenho, a criança já está morta, o que mais posso eu fazer?
– Nada.
– Pois é exactamente isso que eu penso, cum finis est licitus, etiam media sunt licita. Mas o que eu quero ouvir da boca do Dr. Acácio é algo diferente, damos deixar a moral pois o quero saber é o que a Ciência tem a dizer sobre isto, sobre o mandamento “Crescei e multiplicai-vos”. Não seria melhor eu dizer às pessoas, porque são tão pobres e as crianças nascem condenadas à miséria, para não terem tantos filhos? Terem um ou dois e pronto. Ou será que se encontra na Ciência alguma lógica para este mandamento?
– Pois é exactamente isso que eu penso, cum finis est licitus, etiam media sunt licita. Mas o que eu quero ouvir da boca do Dr. Acácio é algo diferente, damos deixar a moral pois o quero saber é o que a Ciência tem a dizer sobre isto, sobre o mandamento “Crescei e multiplicai-vos”. Não seria melhor eu dizer às pessoas, porque são tão pobres e as crianças nascem condenadas à miséria, para não terem tantos filhos? Terem um ou dois e pronto. Ou será que se encontra na Ciência alguma lógica para este mandamento?
– Sabe,
Sr. Padre, eu também já pensei muito nisso e cheguei à conclusão que sim, que à
luz da Ciência este mandamento faz todo o sentido, mas não é tanto em termos
individuais, dos pais e dos filhos que nascem, da miséria das suas vidas, mas
em termos de dinâmica dos povos. Sabe que a decisão de nascer é sempre egoísta já
que todos os pais têm a esperança de que a criança melhore as suas vidas em
termos materiais ou em termos do outro mundo, pensam que dando cumprimento a esse
mandamento de Deus lhes vai trazer vantagens depois da morte. Mesmo quando não
têm filhos com o argumento de que não os querem expor a uma vida de miséria
quase certa continuam a ser egoístas pois ter um filho a viver em condições
degradantes causar-lhes-ia desconforto.
–
Sim Sr. Dr., mas quem quer cumprir os mandamentos é obrigado a ter filhos, não
é por sua própria vontade, sou eu que o imponho ...
–
Sim e não, o que o Sr. Padre faz é, na sua fé, mostrar-lhes que, não dando
cumprimento ao mandamento, ficarão condenados à perdição eterna. Sem fé na
eternidade, os pais têm um filho quando o custo de criar a criança é mais que
compensado pela alegria de a ver crescer e pela ajuda que receberão dele na velhice
mas, com fé no mandamento, o Padre Augusto acrescenta aos pais um benefício, dá-lhes
a possibilidade de, no outro mundo, serem beneficiados. Então, quem acredita que
tem o dever de cumprir o mandamento, terá mais filhos porque tem um duplo
benefício, o benefício terreno e o benefício divino.
– Realmente,
dá-me a ideia que isso é verdade, as pessoas acabam por ter muitos mais filhos
do que teriam se eu não houvesse o mandamento. Mas continuo com as minhas dúvidas,
de que vale ter tantos filhos se os estão a condenar a uma vida de miséria?
– Claro
que isso é verdade, mas, se não fosse assim, no passado ninguém teria tido
filhos. Vamo-nos colocar no tempo em que o mandamento foi escrito, talvez há
uns 5 mil anos atrás, tempo em que, além de morrer muita gente de doença e de
fome, a humanidade era de uma crueldade inimaginável, as pessoas de cada povo
tentavam constantemente massacrar e escravizar as pessoas dos povos vizinhos.
Como nas constantes guerras de atrito a maioria dos jovens era morta ou reduzidos
à escravatura, sem mandamento a vontade dos pais não seria suficiente para
repor as pessoas que morriam.
– Não tinha pensado nisso que, nos tempos
antigos, o sofrimento era ainda maior do que o actual e, mesmo assim, as
pessoas tiveram filhos.
– Exactamente,
mas apenas tiveram filhos em número suficiente para fazer face às perdas porque
lançaram mão do mandamento “Crescei e multiplicai-vos” que era a “corrida ao
armamento” da antiguidade. Se um povo se reproduzisse menos que o vizinho, teria
menos soldados e, mais cedo ou mais tarde, seria subjugado, condenado à
escravatura e ao desaparecimento.
– Interessante
esse ponto de vista da Ciência.
–
Sim, sim, mas vamo-nos concentrar nesta aldeia perdida aqui no meio do Monte. Quando
foi fundada tinha algumas centenas de pessoas e hoje já tem quase 10 mil
habitantes.
– Sim,
o Sr. Dr. deu uma volta total ao que eu pensava, um conclusão interessante e
contrária ao que eu sempre pensei, eu pensava que o mandamento estava a condenar
as crianças à miséria mas está a contribuir para que o povo se torne cada vez mais
forte. Mas, realmente, não deixa de ser egoísmo pois estamos a obrigar a que nasçam
crianças condenadas à miséria.
–
Sim, é verdade, mas os povos têm que se projectar centenas de anos no futuro e
não apenas para a próxima geração. Repare que se uma das gerações achar que não
vale a pena ter filhos porque os tempos são difíceis, o povo fica sem futuro,
desaparece da face da Terra. Se algures no passado as pessoas tivessem decidido
não ter filhos para não os condenar à miséria, quantas pessoas do seu povo haveria
hoje?
–
Bem, naturalmente que não haveria nenhuma e eu não teria chegado a nascer. Os
registos paroquiais dizem que, contando com as crianças, há 150 anos vieram
para cá 290 pessoas fugidas do Vale e agora já somos quase 10 mil pessoas. Pensando
nestes números tenho que concordar que cumprir o mandamento não só favoreceu a
defesa como, por causa do foral, reduziu mesmo os impostos que as pessoas
actualmente pagam.
–
Está a ver como me começa a dar razão? Mesmo com as perseguições, os desaparecimentos
e as mortandades, o seu povo conseguiu prosperar porque a maioria das pessoas manteve
ao longo das gerações o comprometimento com o mandamento “Crescei e
multiplicai-vos”.
Capítulo seguinte (12 - O foral)
0 comentários:
Enviar um comentário