Crime e Redenção
Pedro Cosme Vieira
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Ver o capítulo anterior (14 - A existência)
15 – A recusa
A Maria
Zé começou logo a tentar dar cumprimento ao que tinha prometido a Deus e,
passado uns meses, a tentativa deu resultado: nasceu um menino que, por conselho
da mãe, tomou o nome do seu irmão que tinha morrido no defumadouro, Simeão,
para que nunca mais houvesse recordação dessa criança. Desta forma, o erro de
Deus ficou anulado com a única diferença da criança ter ficado um anito mais nova.
Dada a experiência de ter observado o desenvolvimento do Rúben, normal, e do antigo
Simeão, doente, o desenvolvimento do novo Simeão foi fazendo com que a Maria Zé
ganhasse confiança de que a sua criança tinha nascido livre da doença de forma
que, quando, aos 4 meses, a tia Júlia apareceu para fazer o defumadouro, não
houve qualquer drama. Mais tempo foi passando e nasceu a Raquel e, logo a seguir,
a Sara, duas meninas cheias de saúde e de energia, nunca parando quietas. A
vida estava muito difícil porque era preciso criar 4 crianças e 2 adultos com
os 100€ por mês que o Francisco ganhava a trabalhar como pastor e mais algum
rendimento que resultava das ovelhas e da agricultura de sobrevivência que a
Maria Zé fazia no campo dentro do muro que lhe tinha sido atribuído e ao
Francisco. Mas lá se iam aguentando e, afinal, já só faltava uma criança para
cumprir a penitência.
Um
dia de Verão nasceu mais um rapaz, o Levi, que seria o último da promessa. A
Maria Zé ficou um pouco apreensiva porque a mãe tinha feito o mau presságio de que
Deus, por ser brincalhão, ia voltar a atacar exactamente quando ela pensasse
que já estava livre. E, realmente, aconteceu o pesadelo que lhe costumava
perturbar as noites, no momento em que já via a porta de saída da prisão aberta
de par em par, no último momento, quando um pé já quase estava fora, veio uma
corrente de ar e a porta, muito lentamente como que levando a noite toda, fechou-se.
O Levi chorava de mais e, cada dia que passava, parecia que ficava mais
atrasado. O tempo foi andando até que, certo dia, aconteceu o que já estava
planeado desde há anos, quando a noite já era fechada, o cão ladrou e bateram à
porta “Maria Zé, sou eu, sou a Júlia, a tua tia”. A Maria Zé ainda estava a pé
e o seu corpo estremeceu todo. “Ai meu Deus que ela vem para matar o meu Levi, o
que é que eu posso fazer? Não lhe posso abrir a porta. Vou-me calar e manter a
porta fechada”.
–
Abre a porta mulher que fizeste o pacto comigo e com Deus e eu sei que estás ai
porque tens a vela acesa. Abre a porta, cumpre a tua palavra, eu disse-te que o
pacto era irrevogável e tu disseste perante Deus que o aceitavas. Agora não
podes recuar.
A
Maria Zé fez um sinal ao Francisco para que se calasse “Vai lá para o quarto
que eu trato disto, a Tia Júlia quer matar-nos o Levi”. O Francisco era muito
boa pessoa pelo que nem abriu a boca.
–
Abre a porta mulher.
A
Maria Zé aproximou-se da porta e, em voz baixa para que as crianças não
acordassem, disse “Vá-se embora que eu sei que vem cá para matar o meu Levi,
vá-se embora que eu amo muito o meu filho. Vá-se embora, desapareça da minha
porta e nunca mais cá volte.”
Nesse
momento o Francisco tomou parte na conversa, baixinho. Por ter uma fé cega e pretendendo
honrar a palavra dada, ficou do lado da Tia Júlia “A tua Tia Júlia só vem cá
fazer o defumadouro que nós próprios lhe encomendamos antes de nos casarmos.
Não te lembras? Isso não é nada, deixa a mulher entrar que não vai resultar em
nada. Temos que ter fé em Deus.”
– Cala-te
que tu és um burro, não vês que ela vai matar a nossa criancinha? O Levi tem a
doença, cala-te e vai-te deitar. – “Vá-se embora que eu não lhe vou abrir a
porta”.
–
Deixa-te disso mulher que não pode ser, fizeste o pacto, vais ter que o cumprir,
custe o que custar.
–
Vá-se embora, não me puxe para o inferno, vá-se embora senão saio aí fora e ainda
a mato.
Por
causa da discussão, o ladrar do cão foi-se tornando cada vez mais desesperado.
A Tia Júlia não sabia mais o que fazer pelo que foi-se embora a falar sozinha “O
filho não é meu, não sou eu que tenho que o criar, para que me vou aborrecer?
Vou-me embora para a minha casinha onde estava tão bem e de onde nunca deveria
ter saído” Lá foi aquele vulto escuro a caminhar no meio da escuridão total
apenas iluminada por um pequeno lampião que segurava com a mão mas, pelo
caminho, tendo passado pela casa da mãe da Maria Zé, a sua irmã Isabel, decidiu
bater-lhe à porta para contar o sucedido.
–
Isabel, Isabel, sou eu, a tua irmã Júlia, acorda que venho cá por causa da tua
filha Maria Zé.
– Eu
ainda estou a pé, já vou – ouviu-se de dentro da casa, um som abafado pelo
ladrar do cão – já vou, aguarda só um minuto para eu destrancar a porta – e,
realmente, passado um minuto, abriu-se a porta – entra, entra que a noite foi
feita para as coisas que não podem andar de dia. Mas que te trás cá? Pareces
aflita. Afinal qual é o problema com a minha filha?
–
Venho agora de lá. Tinha combinado ir lá fazer o defumadouro ao Levi e ela não
me abriu a porta pelo que, antecipo eu, já sabe que a criança nasceu com a doença.
Disse mesmo que, se não me viesse embora, me matava. Eu já não tenho idade para
me aborrecer com isso pelo que me vim embora.
–
Mau, isso é muito mau, estou a ver que ela desistiu de lutar contra a maldição a
que estamos condenados. Não, isto não pode ficar assim, nunca podemos desistir,
temos que lutar sempre. Estou mesmo a ver que isto é Deus a querer brincar
comigo, deu a volta à rapariga porque, quando foram os meus, viu que não me
conseguia quebrar pelo que agora vai usar a minha filha para ver se eu tenho a
fibra que sempre Lhe anunciei. Não pode ser, não vou quebrar agora, não, não,
se dei cabo, quer dizer, resolvi o problema dos meus e eram meus, não é agora
que vou deixar que a minha filha ponha tudo a perder. Não, vou eu mesma resolver
isto.
–
Mas o que podemos fazer?
–
Eu vou resolver isto, deixa-me pensar. Como ela tem a porta trancada por dentro
vou precisar de arranjar um estratagema para entrar, não vai poder ser à bruta.
Já sei, vou buscar a mãe do Francisco que o vai chamar cá para fora e, depois de
ele abrir a porta, eu entro.
– Mas
ela é muito mais forte do que tu pelo que vai dar luta e tu precisas de
liberdade de acção.
– Vou
precisar de quem a agarre, já sei, vou chamar as minhas filhas que moram aqui
ao lado, criei-as para alguma coisa. Vais também tu e vou ainda chamar as nossas
irmãs que moram ali ao fundo da rua. Espera aqui um pouco que vou ver quem
arranjo.
A
Isabel lá foi apressada pela noite. Primeiro, bateu à porta das filhas que
moravam mesmo ali ao lado, 3 mais os maridos e os 13 filhos, “Meninas, preparem-se
que precisamos de ir a casa da vossa irmã Maria Zé que está passada da cabeça.
Eu ainda preciso ir chamar a mãe do Francisco e venho já.” Depois bateu às
portas das irmãs e, finalmente, à porta da mãe do Francisco que ficou muito
preocupada e acedeu logo a fazer parte do ajuntamento “Já todas passamos por
isso pelo que temos que nos ajudar umas às outras. O meu filho não tem
estrutura para aguentar isto”. Passado uma meia hora, a Isabel já estava de
volta a casa com as filhas, as irmãs e a mãe do Francisco. Com a Júlia, eram 8
mulheres.
– Meninas,
vamos fazer assim, a mãe do Francisco chama o filho enquanto nós nos mantemos
em silêncio. Depois, mal ele abra a porta, entramos, trancamos a porta para ele
não ir em socorro da mulher e vamos todas directas ao quarto. Vocês amordaçam a
Maria Zé enquanto eu retiro a criança do quarto e resolvo o problema. Amanhã de
manhã, logo se vê no que deu. Estou a pensar e ainda preciso ir a casa buscar o
xaile branco, eu tenho a fé que o xaile branco nos liga a Deus.
Capítulo seguinte (16 - A operação)
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