Crime e Redenção
Pedro Cosme Vieira
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Ver o capítulo anterior (11 - A multiplicação)
12 – O foral
O
Sr. Padre Augusto continuou com um pouco de história.
–
Quando as pessoas foram expulsas do Vale, viveram tempos terríveis. Na altura,
referem os livros de registo que tenho, havia no Vale 938 pessoas do meu povo
mas, por causa da matança, só conseguiram fugir para cá 492, fugiram para este
monte que pertence ao Arquiduque. Como na altura não havia por aqui abrigos, no
primeiro inverno morreram ainda muitas pessoas de frio e de fome de forma que
só 306 pessoas chegaram à primavera seguinte. Nessa altura o Arquiduque deixou-se
tocar no coração e assinou o foral que permitiu que desde então possamos a
viver aqui. Foi um negócio que agradou ao Arquiduque porque viu nos refugiados
uma oportunidade para valorizar estas suas propriedades que não rendiam nada.
Foi bom para as pessoas porque a alternativa era entregarem-se aos turcos para
serem escravos.
– O
foral estou-me agora a lembrar que deve ser aquele texto em Latim que está
escrito na parede da sacristia, não é? – disse o Dr. Acácio.
– Exactamente
mas, como está em Latim é de difícil leitura. As negociações foram difíceis
porque a única arma negocial que as pessoas tinham era a ameaça de que, em alternativa
ao foral, poderiam ir para a Turquia. Depois de alguns meses de negociações,
chegaram a um acordo em que as pessoas ficaram com o direito de arrotear e
cultivar os terrenos do Arquiduque desde que lhe entregassem metade de tudo o
que produzissem e todos os anos 10 gramas de ouro por cada pessoa válida.
–
Mas isso eram condições muito desfavoráveis principalmente sabendo que era
preciso arrotear os terrenos.
–
Sim, eram condições desfavoráveis mas o Arquiduque, mesmo querendo, também não poderia
fazer melhor pois tinha medo de ser acusado pelas pessoas do Vale de ser amigo dos
que eles tentaram aniquilar. Assim, as pessoas do Vale imaginaram que, com a
imposição dos 10 g por ano mais 50% sobre tudo o que produzissem, as pessoas acabaria
por morrer de fome ou por se ir embora.
– Sim
isso era muito pesado, 10 gramas de ouro por ano mais 50% da produção!
– Sim,
eram condições duras mas o pagamento dos 10 gramas de ouro por ano além de dar
à pessoa a isenção de impostos sobre cinco ovelhas e duas cabras também tinha uma
cláusula que acabou por se tornar muito favorável, dizia lá que estava isento de
importo tudo o que a pessoa produzisse no terreno que conseguisse cercar com um
muro com uma braça de extensão.
–
Bem, 5 ovelhas e duas cabras ainda vá lá que não vá, já dão algum rendimento mas
um muro com uma braça não dá para cercar nada!
– Pois
Dr. Acácio, realmente parece que uma braça não dá para cercar nada mas,
pensaram os antigos, que era preciso garantir a todo o custo uma isenção de
impostos para a manufactura. Desta forma os sapateiros, ferreiros,
carpinteiros, tecedeiras ou costureiras ficariam isentos de imposto sobre os
produtos que produzissem e que, depois, poderiam vender nos mercados das redondezas.
–
Mas um terreno cercado por uma braça só dá para ter um banco, seria assim que
as pessoas iriam trabalhar? Sentadas num banco?
– Realmente,
isoladamente, uma braça só dá para um banco e deve ter sido isso que o
Arquiduque pensou quando os antigos propuseram essa condição. Mas a
complexidade do texto foi estratégica para deixar passar a condição de “Intra vallum, tributum vacationem” porque
não proibia que as pessoas juntassem as suas braças num só muro.
– O
Sr. Padre perdoe-me que eu não estou prático em Latim ...
–
Sim, sim, o texto do foral diz que estão isentos de impostos todos os bens produzidos nos terrenos cercados pelo muro e,
apenas noutra condição é que diz que cada pessoa pode fazer um metro de muro.
Veja só que, logo no início, com os adultos que havia nos 290 refugiados
iniciais, puderam fazer um muro com 290 braças de extensão o que já dava isenção
de impostos sobre terra suficiente para fazer as casas, as oficinas e ainda os
currais para os animais.
– Mas
o Arquiduque deve ter ficado danado quando viu o alcance dessa condição.
–
Realmente, quando o procurador lhe comunicou que estavam a construir um muro
que juntava as braças de toda a gente, ficou um pouco irritado mas, sendo uma
pessoa séria, mandou um especialista analisar o texto do foral e, como a
conclusão foi que esta interpretação estava correcta, aceitou o veredicto. Também
na altura o terreno dentro do muro era pequeno, 100 m2 por pessoa.
– Mas
eu penso que não deixou de ser um acaso da sorte.
– Até
pode ter sido mas juntando este acaso da sorte ao crescimentos da população, a
área da aldeia pode crescer até à dimensão que tem hoje. O Dr. Acácio já me fez
ver que o mandamento “Crescei e multiplicai-vos” garante a sobrevivência dos povos
mas, neste caso, fez com que, de ano para ano o muro fosse crescendo até hoje termos
800ha isentos de impostos. Uma condição que parecia sem importância acabou por diminuir
significativamente os impostos pagos.
–
E como foi que, no final, o Arquiduque aceitou o cerco dos melhores terrenos que
havia no monte?
–O
cercar desse terreno não causou choque porque foi acontecendo ano após ano
conforme mais pessoas iam nascendo e pagando mais ouro. Veio o filho, o neto, o
bisneto e só este ano o Arquiduque vai receber mais de 50kg de ouro.
–
Não deixa de ser interessante como uma condição aparentemente sem importância se
tornou a chave do sucesso. É interessante como já sou médico aqui há algumas
dezenas de anos e só agora compreendi este pormenor do foral.
No
entretanto, deu horas na torre da igreja.
– Ai
meu Deus como vão as horas, Sr. Dr. agradeço-lhe muito estas palavras que me confortaram
como nunca pensei ser possível. Vamos ter que continuar esta nossa conversa mas
terá que ser noutro dia pois agora tenho que ir pois às 5 horas estão à espera
para que eu faça o levantamento do corpo da criança falecida de casa dos pais.
Até logo, até logo.
Capítulo seguinte (13 - O cortejo)
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