Crime e Redenção
Pedro Cosme Vieira
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Ver o capítulo anterior (13 - O cortejo)
14 – A existência
Como
ficou combinado, certo dia o Padre Augusto voltou ao consultório do Dr. Acácio
para trocar mais umas palavras sobre as mortes das crianças.
– Salve
Sr. Dr., venho cá hoje para discutir outro problema que me confunde e que, no
outro dia, não tive tempo para lho colocar. Como é possível que as pessoas
façam um contrato para que “sejam devolvidos ao Pai do Céu” os filhos que
nascerem com a doença e, depois de as darem ao mundo, resultar uma forte
sensação de perda quando é executado o que tinham planeado? Pessoalmente, penso
que isto não tem qualquer racionalidade, será que o Sr. Dr. vê alguma
racionalidade neste sentimento de perda?
–
Realmente nunca tinha pensado nisso, parece irracional porque o que nunca
existiu deveria ser igual ao que existe mas que, no entretanto, deixou de
existir. Mais neste caso mais é estranho porque o pais das crianças não queriam
que elas chegassem sequer a nascer mas, mesmo assim, sentem a sua perda.
–
Pois é exactamente isso que eu penso, a sensação de perda não é racional mas,
então, porque sentem os pais essa perda? Será que as pessoas não são racionais
ou será o efeito da alma da criança que, uma vez criada, nunca mais tem fim?
–
Não, não, esta sensação de perda tem que ter alguma racionalidade à luz da
evolução das espécies. Pode ser irracional em termos individuais mas tem que
ter alguma racionalidade quando olhamos para o colectivo.
– Quer
então o Sr. Dr. que isto será parecido com o Mandamento Crescei e
Multiplicai-vos? Mas como pode existir uma razão na óptica do colectivo que é contrária
à razão na óptica do individuo?
– Tem
que ser semelhante à racionalidade da estratégia da abelha que morre ao ferrar
o atacante. A abelha ao condenar-se a morrer, o que não será racional,
consegue proteger o enxame.
–
Sim, estou a compreender que um acto de heroísmo possa sacrificar o indivíduo
para favorecer o colectivo mas não estou a ver como o desgosto poderá proteger
o colectivo.
–
Charles Darwin avançou a teoria que tudo o que existe hoje resulta de um longo
de um longo processo de evolução e, por isso, os sentimentos que existem
contribuíram no passado para que hoje estejamos vivos. A sensação de perda apenas
será racional se contribuir para o aumento da capacidade de sobrevivência dos povos
ao longo das gerações.
–
Mas os outros animais não têm memória suficiente para conseguirem separar o que
nunca existiu do que já não existe pelo que não estou a ver como esse
sentimento nos pode ajudar.
–
Bem, os ratos têm uma estratégia de sobrevivência totalmente diferente da nossa,
enquanto que o ser humano tem poucos filhos a quem prestamos muita atenção, o
rato tem 10 filhos por mês aos quais presta pouca atenção. Em todos os casos
tem que ficar garantido que, geração após geração, o número de indivíduos não
diminui.
–
Mas esse exemplo é contrário ao que o Sr. Dr. pretende defender pois indica que
os pais, desde que tivessem mais de 2 filhos saudáveis, não deveriam sentir a
perda dos que morreram porque nasceram com a doença.
–
Exactamente, mas o desgosto não vem da razão individual mas foi impresso na
nossa mente ao longo dos milénios. Imaginemos as gerações que nos precederam ao
longo dos milhares de anos e que viveram em tempos muito mais difíceis do que o
actual. Se a mãe pensasse “a minha criança morrer é igual a nunca ter nascido”,
à primeira dificuldade abandonava a criança à sua sorte até porque poderia
sempre pensar que iria ter outra quando os tempos fossem melhores. Depois, como
os tempos nunca melhoravam, o povo extinguir-se-ia. Por isso, todas as mães têm
que ter um lugar especial para recordar os filhos que morreram.
–
O Sr. Dr. está quase a convencer-me de que realmente esse desgosto é importante.
–
É importante mas também pode ser contraproducente. Se essa recordação existe
com o objectivo de melhorar a probabilidade de sobrevivência do povo, não pode passar
a funcionar como um entrave a essa mesmo sobrevivência.
–
Mas uma entrave como?
– Porque
repetidamente há pais que usam este desgosto como argumento para não terem
filhos. Argumentam que lhes causa grande desgosto ter filhos condenados a uma
vida de perseguição, fome e miséria. Mas isso é errado pois seria equiparado a
um rato não ter filhos para se poupar do desgosto de os ver, na grande maioria,
comidos pelos gatos. No fundo, os pais têm que assumir que a sensação de perda
é um sentimento que tem por fim a sobrevivência do povo e que, portanto, têm
que o ultrapassar tendo mais filhos exactamente nos tempos mais difíceis. Mesmo
que antecipem que os filhos vão sofrer, têm que os ver como uma obrigação que
têm para com o futuro longínquo do seu povo e, quando digo longínquo, digo
daqui a 10 ou 20 mil gerações, daqui a centenas de milhar de anos.
–
Sabe Sr. Dr. eu nunca tinha pensado que o nosso povo existir daqui a 10000
gerações está totalmente dependente do que a geração actual pensa quanto a ter
filhos mas, realmente, se hoje não tivermos filhos por uma causa qualquer, seja
a doença, a miséria ou as perseguições, o certo é nosso povo desaparecer.
–
Exactamente, coloquemo-nos há apenas 120 gerações atrás, nesse tempo vivia-se a
escravidão no Egipto. Hoje todos somos descendentes desses escravos. Será que
algum deles antecipou que, lutando pela vida e fazendo o sacrifício de criar
filhos, estava a permitir que nós hoje estivéssemos aqui?
–
Não, concerteza que não, nunca o imaginaram, nem eu alguma vez imaginei isso,
que tenho antepassados que fizeram parte dos escravos egípcios falados na
bíblia.
– Se
nos colocarmos 120 gerações atrás, temos não só antepassados que foram escravos
mas também que foram reis, faraós e imperadores, que foram generais e que foram
soldados, que foram conquistadores e que foram conquistados.
–
Eu não imaginava essa lógica pelo que, quando recebi a inspiração de que a
penitência a aplicar quando as mães matam os filhos deveria passar por mais
filhos, estava mesmo a ser guiado pelo Espírito Santo. Realmente, tenho que
continuar a perdoar esses defumadouros e a ajudar as mães a ultrapassar a perda
que representa a morte das crianças pois é isso que, em termos de povo de Deus,
faz sentido. No inicio das nossas conversas penso sempre que não vai ser
possível fazer luz nas questões que me perseguem mas, no fim, saio daqui
totalmente confortado. Mais uma vez, muito obrigado.
Capítulo seguinte (15 - A recusa)
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