Crime e Redenção
Pedro Cosme Vieira
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Ver o capítulo anterior (12 - O foral)
13 – O cortejo
A
Maria Zé chegou a sua casa acompanhada pela mãe pouco passava das 15h quando a Sr.
Celeste e a Menina Dulcinha já tinham tudo preparado. Depois de terem retirado
os bancos da sala para que coubessem mais pessoas, forraram as paredes com um
pano branco, fininho como gaze. Colocaram a mesa no meio da sala que usaram
para pousar a urna com a criança morta. No fundo colocaram flores.
Contrariamente ao que era normal, a criancinha estava na urna deitada de lado,
disposição criada pela Dulcinha para dar mais visibilidade às asinhas brancas
que a criança tinha nas costas e que saiam parcialmente da urna. Lá fora estava
a mesa da cozinha mas, desta vez, coberta com uma toalha branca de linho que a
Dulcinha tinha trazido. Estavam lá várias travessas com pataniscas de bacalhau,
broa cortada em fatias e malgas para que as pessoas pudessem beber vinho ou
limonada.
–
Menina Dulcinha, boa tarde, isto está muito bonito, está melhor do que no
funeral das minhas criancinhas, ainda era a sua falecida mãezinha a fazer os
funerais. Aquilo é que era uma boa pessoa, quando chegou ao fim ainda perdava pelo
menos metade do preço dos funerais, também éramos tão pobres ...
–
Boa tarde Sr. Isabel, o seu netinho morreu mas eu fiz o possível para que
ficasse bonito como quando estava vivo. Tenho a certeza que Deus o recebeu no
Céu e fez dele um novo anjinho.
–
Pois foi, agora já disse à minha filha que a única forma de esquecer esta tristeza
é ter outro e andar com a vida para a frente.
No
entretanto, começaram a chegar as pessoas. Vieram irmãos, cunhados, sobrinhos
mas a maior parte eram primos, naquela terra parecia que todos eram primos de
todos. As pessoas entravam na sala, olhavam para a criança, benziam-se e
tornavam a sair para comer uma patanisca, beber um pouco de vinho e dar dois
dedos de conversa. “Coitadinho mas foi a vontade de Deus” era a frase que mais
se ouvia como se a morte fosse algo banal. Mas também havia quem dissesse
“Custa muito ver um filho morrer mas a gente acaba por ultrapassar isso”.
Depois começaram a chegar as crianças, primeiro uma, depois outra e mais outra
e, passado pouco tempo, já lá estava uma pequena multidão, talvez umas 30
crianças que, seguindo as ordens do Dr. Acácio, não puderam entrar na casa
“para evitar os contágios”. Eram os primos em grau diverso que tinham aparecido
com o incentivo extra da limonada e dos bolinhos de mel prometidos pela Dulcinha.
Além do mais, as crianças gostam do espectáculo, depois de vestidas com as
capinhas brancas forradas a penas que a Dulcinha tinha, formavam com os adultos
vestidos com as capas vermelhas da confraria, um contraste de grande beleza cénica.
Quando
pouco faltava para as 17h, o Padre Augusto apareceu vestido com a alva, toda
rendada como se fosse uma combinação de mulher, sobre a batina preta e
acompanhado pelo Sr. Mariazinha vestido com a capa vermelha da confraria e que
trazia a caldeirinha com a água benta, a sineta e a cruz. Assim que chegou
disse “Dominus vobiscum” a que os
presentes responderam “Et cum spíritu tuo”.
Depois, entrou na sala, pegou na caldeirinha e, com o aspersório, espalhou água
benta pela urna e espaço envolvente repetindo “Dominus animam tuam in cælum” a que as pessoas respondiam “Amen”. Depois, benzeu-se “Levantemos a
urna”.
O Sr.
Costa que entretanto chegou pegou na tampa, pousou-a sobre o caixão e pregou-a. Normalmente, o caixão era
reaberto no momento do enterramento mas, neste caso, já ia definitivamente pregado
porque “O Sr. Dr. Acácio disse que, uma vez saído de casa, o caixão não poderia
mais ser aberto”.
Se
fosse um adulto, seria usada uma carroça mas, como era uma criança pequenina,
seria levada por 4 pessoas numa padeola, duas a pegar à frente e duas atrás. Quando
o caixão saiu, começou a formar-se a procissão fúnebre. À frente ia o Sr. Mariazinha
com a sineta na mão direita, sempre a tocar, e a caldeirinha na esquerda, depois
ia o Sr. Padre com a cruz que segurava com as duas mãos, logo seguido pelo
caixão e, finalmente, seguina as pessoas, primeiro as crianças com a capa
branca ladeadas pelos homens da capa vermelha e, depois, as mulheres e o resto
dos homens que não tinham capa.
O
cortejo teve que se aperta para caber pelos becos da aldeia que foi necessário
percorrer até chegar à Igreja que era insuficiente para abrigar todas as
pessoas pelo que a maioria ficou cá fora, no pátio que circundava o templo,
meio a conversar, meio a rezar “Pela alma do anjinho”. Latinorium para aqui, latinorium
para ali e tornou a sair toda a gente como se tivessem entrado por engano. O
cortejo tornou-se a formar para rumar ao cemitério que ficava fora do muro que
cercava a aldeia mas, agora, já só formaram as criancinhas e as pessoas que
tinham a capa vermelha pois as outras foram à sua vida.
O
cemitério era fora do muro que circundava a aldeia, a uns 200m metros de
distância. Tinha a forma de um quadrado com 100 m de lado e era cercado por um
muro alto, com 2 metros de altura que tinha apenas uma porta virada para o
caminho que saia da aldeia. A procissão demorou uns 10 minutos a percorrer a
distância que mediava entre a igreja e o cemitério e, quando chegou ao seu
destino, o dia estava quase a terminar “Rápido, que é preciso enterrar a
criança antes que o Sol se ponha” disse o Sr. Mariazinha que tinha, depois do
almoço, aberto meia campa e preparado tudo para o enterramento.
“Vem
ali o polícia Vieira” – disse em voz baixa a Menina Dulcinha ao Sr. Costa, seu pai.
“Deixa-o vir”. O polícia não era bem querido na aldeia porque, além de não ser
uma pessoa dali, gostava de inventar multas e problemas com o único fito de
receber umas prendazitas. Assim que chegou à beira das pessoas começou logo a falar
em voz alta.
– Parem
o enterramento. Sr. Costa, é preciso que abra o caixão para eu ver o estado do
cadáver que isto cheira-me a esturro.
–
Boa tarde Sr. Polícia Vieira, ao menos boa-tarde, não me custava nada abri-lo
mas tenho aqui o atestado do Dr. Acácio a dizer que a criança morreu de tifo e,
por haver perigo para a saúde pública, o caixão não pode ser aberto. Veja aqui,
veja a cópia do atestado e o original da autorização oficial para o
enterramento. Esta autorização veio do seu posto da polícia, veja que está
assinada pelo oficial de serviço e tem o carimbo do Sr. Arquiduque. Mas o Sr. polícia
faça o favor de ir ali falar com a minha filha que foi quem tratou da papelada...
O Polícia
Vieira, enquanto lia os papeis, começou a dirigir-se para a Dulcinha que estava
à porta do cemitério a falar com umas pessoas.
– Menina
Dulcinha, precisamos de falar em particular, venha aqui se faz favor.
–
Sim Sr. Comandante, passa-se algum problema com a papelada? É que fui eu quem
foi tratar disso tal e qual como aprendi com a minha mãezinha que Deus lá tem e
penso que não há nenhum problema.
–
Com esta gente nunca se sabe o que vai sair, são piores do que os gatos. Têm
filhos atrás de filhos e, quando lhes dá na cabeça, não se acanham nada em os
matar com as próprias mãos. São como os animais.
–
Não diga isso Sr. Comandante que somos todos criação do mesmo Deus. Mas tenho
aqui uma coisinha para o Sr. Comandante tomar um café – a Dulcinha foi ao porta-moedas
e retirou uma nota de 10€ – tome lá Sr. Comandante que o Sr. também se cansou a
vir cá e, como vê, os papéis estão todos em ordem.
–
Isto tem aqui umas coisitas que davam para uma multa mas hoje, por estar bem
disposto, vou deixar a coisa passar.
O polícia
virou costas e, sem mais nada dizer, foi-se embora com cara de poucos amigos. A
Dulcinha olhou de longe para o pai e fez um sinal com a mão a dizer que o
enterramento poderia continuar.
Passaram
duas cordas pelo caixão de forma a que fosse possível descê-lo até ao fundo da cova
que tinha 7 palmos de profundidade. Assim que retiraram as cordas, o Mariazinha
pegou na pá e tapou-a a toda a velocidade. Estava tudo terminado. Aquele que tinha
sido deixou defenitivamente de o ser.
– Paz
à sua alma.
Capítulo seguinte (14 - A existência)
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