domingo, 17 de maio de 2015

4 - A preparação

Crime e Redenção 
Pedro Cosme Vieira
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Ver o capítulo anterior (3 - O desgosto)




4 – A preparação
A Maria Zé ficou a gritar, inconsolável, absorvida pela dor e pela ideia de que tinha sido cúmplice de um crime de dimensão bíblica. Mas, com o decorrer dos minutos começou a alinhavar alguns pensamentos desculpabilizadores. “Só agora percebo porque as pessoas falavam no defumadouro como algo terrível. Em criança eu acreditava no que diziam, que as crianças que morriam eram anjinhos que Deus tinha colocado provisoriamente no meio de nós e que, naquela noite, tinha chamado de volta para junto Dele mas, afinal, agora sei que essas crianças, pelo menos algumas, morreram por causa do defumadouro. E, tanto quanto me recordo, ninguém foi presa por causa disso.”
Veio até à porta para apanhar a frescura daa madrugada e logo continuaram os pensamentos. “Pensando retrospectivamente, a velhota até tem razão. Quando lhe fui pedir para que evitasse ter que criar filhos deficientes, estava a rejeitar, de entre todos os milhares de anjinhos que tinha dentro de mim, os que eram doentes. E, realmente, ela não me disse que não nasceriam mas apenas que iria resolver o assunto da melhor forma possível. Que eu não iria ter filhos doentes para criar e, realmente, cumpriu o trato mas não da forma como eu tinha imaginado. É que naquele dia, ao dizer que não queria que nascessem crianças deficientes estava a dizer que não queria que o Simeão nascesse mas agora, depois de o ter dado à vida, nunca teria coragem de lhe dar fim. Qual a lógica de não querer que ele nascesse e, agora, estar triste por ele ter morrido? Se ainda hoje mo perguntassem eu diria que não queria que ele viesse ao Mundo porque não o poderia criar. A questão é que eu acreditei numa história de crianças. quiz acreditar no impossível, na ideia de que um simples defumadouro, mesmo que fosse com carvão da Terra Santa, iria evitar que os ovinhos com a doença fossem transformados em crianças. Mas, no fundo, eu sempre soube que isso era impossível. No fundo, apenas estava a ser covarde, a atirar para outra pessoa o problema que tinha que ser resolvido por mim mas que não conseguia enfrentar. Como fui injusta em lançar à Tia Júlia a praga do fogo do Inferno quando a sua vida, com o peso de todas as criancinhas que devem ter morrido às suas mãos, sei lá quantas, já deveria ser um inferno. Estou finalmente a ver que a Tia Júlia é uma vítima de todo este processo sacrificando-se pelos outros.”
Os pensamentos continuaram por longas horas intercalados com momentos de desespero pelo que só por volta das 9h da manhã, já o Sol ia alto, é que a Maria Zé tomou consciência de que tinha que ir tratar das consequências daquela noite. Provavelmente iria ser condenada a uma pena qualquer mas, pensando bem, já outras mortes tinham acontecido e ainda ninguém tinha sido castigado, talvez a chave estivesse em manter bico calado. Para publicitar o seu desgosto, vestiu-se com roupa preta e, depois, comeu um bocado de pão de milho com café frio feito de véspera e partiu para a casa do Sr. Costa a toda a pressa. Pelo caminho foi pedindo às pessoas que fossem avisar os pais e o marido do sucedido. Chegando a casa do Sr. Costa, bateu à porta suavemente porque o senhor era temperamental e não gostava nada de choradeira à porta de sua casa.
– Sr. Costa, sou a Maria Zé do Zenão. Não se aborreça mas eu preciso que me trate do funeral do meu Simeão que morreu durante a noite.
Aguardou um pouco em silêncio, sentada num dos três degraus que permitiam descer da porta para o nível do caminho, até que o Sr. Costa abriu a porta e, contrariamente ao que era seu costume, mostrou-se razoavelmente afável.
– Deixa lá isso mulher que acontece a qualquer um. Entra, entra, que é para isso que cá estou, entra para falares com a minha filha que vai tratar da papelada e da roupa. Vou-te dar um licorzinho e entretanto preciso saber o tamanho da urna, quem te morreu foi o Rúben ou o Simeão.
– Foi o Simeãozinho, o mais pequenino, só tinha 4 meses.
– Então, chega uma urna de 80 cm. Tens é que ter consciência que isto vai custar dinheiro, vai-te custar 200€.
– Mas Sr. Costa eu não tenho esse dinheiro, estou mesmo com dificuldades. Veja lá se me faz uma atenção. É que só tenho 75€ comigo.
– Deixa-te dessa conversa que isto dá despesa com o doutor, o padre, o coveiro e não nos podemos esquecer do Polícia Vieira que é um comedor. Vou ter que lhe dar qualquer coisa pois, assim que constar que te morreu a criança durante a noite, vai aparecer por aí como um abutre. O mais que te posso fazer é dares-me já esses 75€ e, depois, 10 mensalidades de 10€. Oh Dulcinha, Dulcinha, anda cá, estás a ouvir? Anda cá para tratares da papelada da criança da Maria Zé que “foi para junto do Pai”.
“Para falar do Oolícia Vieira”, pensou a Maria Zé, “é porque o Sr. Costa sabe que a minha criança morreu de causas não naturais mas vou manter o silencio pois é a minha única safa.”
A Dulcinha apareceu, era praticamente um criança, com uns 12 anos, mas a quem cabia, desde que a mãe tinha morrido de pneumonia havia poucos meses, a tarefa de fazer a roupa e tratar da papelada das criancinhas que morressem na aldeia. E, dada a mortandade, isso dava-lhe muito trabalho.
– Bom dia Sra. Maria Zé, é uma tristeza a sua criança ter morrido mas temos que ser fortes e andar para a frente. O meu pai vai tratar de fazer a urna e eu vou tratar do resto, é preciso avisar o Sr. Padre Augusto para tratar da cerimónia religiosa e o Sr. Mariazinha para tocar o sino e abrir a cova. Tenho ainda de tratar da certidão de óbito. Poderia ser o Sr. Padre a tratar disso mas, como a morte de uma criança levanta sempre problemas, o melhor é chamar o Sr. Dr. Acácio. Acha bem eu fazer uma roupinha toda em branco com uma asinhas? É o que se usa normalmente nos anjinho. Tenho aqui um pano de seda e penas, tudo vindo de Paris. Vai ver que fica muito bonito.
– Ai menina Dulcinha, o que me aconteceu foi uma tragédia. Nem sei o que me vai acontecer agora. É que a criança morreu em parte por meu desmazelo – cala-te burra, pensou ela.
– Vamo-nos esquecer da noite de ontem porque já nada se pode fazer para trazer a criança de volta à vida. E foi a senhora que a deu à vida, que teve as dores de parto, que lhe deu de mamar pelo que sabia, mais do que ninguém, o que era melhor para ela. Agora que está morta, tem que olhar em frente e lembrar-se do Rúben que precisa de si. Temos que olhar ao principio e ao fim e não ao que aconteceu pelo meio. Se há uns meses tinha um filho e hoje tem um filho, pelo meio tem que pensar que nada aconteceu. Agora tem que ser forte e não fazer como a mulher de Lot que olhou para trás e ficou transformada em estátua de sal.
Parecia estranho uma criança de apenas 12 anos ter aquela força toda mas, de facto, aquelas frases não passavam da repetição de uma cassete que tinha ficado na memória das conversas que ouvia da sua mãe.
– Dê-me agora a chave de sua casa, vá até à igreja rezar e aproveite para se confessar com o Sr. Padre que é uma pessoa muito sábia e compreensiva. Eu vou a sua casa com o Sr. Dr. Acácio e, depois das 13h, pode aparecer lá que já estará tudo pronto. Aproveite para pedir ao Sr. Mariazinha para tocar o sino ainda de manhã para que o funeral possa ser na missa de hoje das 18h e para abrir uma meia campa. É melhor fazer o funeral ainda hoje porque está muito calor e a criança morta pode tornar-se um problema de saúde pública.

A Dulcinha acompanhou a Maria Zé à porta e chamou por uma criança que andava por lá a brincar, deu-lhe meio euro e mandou-a ir dizer ao Sr. Dr. Acácio para às 11h ir ter a casa da Maria Zé pois era precisa uma certidão de óbito para uma criança que tinha morrido durante a noite. Voltou para dentro e agarrou-se à costura e, num ápice, aldrabou a roupinha com as asinhas que foi buscar a uma caixa de cartão. Depois, foi à oficina do pai e, estando a urna já pronta, forrou-a por dentro com pano também branco. Agora, era só pegar em tudo e rumar a casa da Maria Zé.

Capítulo seguinte (5 - A casa)

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