Crime e Redenção
Pedro Cosme Vieira
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Ver o capítulo anterior (3 - O desgosto)
4 – A preparação
A Maria
Zé ficou a gritar, inconsolável, absorvida pela dor e pela ideia de que tinha
sido cúmplice de um crime de dimensão bíblica. Mas, com o decorrer dos minutos
começou a alinhavar alguns pensamentos desculpabilizadores. “Só agora percebo
porque as pessoas falavam no defumadouro como algo terrível. Em criança eu acreditava
no que diziam, que as crianças que morriam eram anjinhos que Deus tinha
colocado provisoriamente no meio de nós e que, naquela noite, tinha chamado de
volta para junto Dele mas, afinal, agora sei que essas crianças, pelo menos
algumas, morreram por causa do defumadouro. E, tanto quanto me recordo, ninguém
foi presa por causa disso.”
Veio
até à porta para apanhar a frescura daa madrugada e logo continuaram os
pensamentos. “Pensando retrospectivamente, a velhota até tem razão. Quando lhe
fui pedir para que evitasse ter que criar filhos deficientes, estava a
rejeitar, de entre todos os milhares de anjinhos que tinha dentro de mim, os
que eram doentes. E, realmente, ela não me disse que não nasceriam mas apenas
que iria resolver o assunto da melhor forma possível. Que eu não iria ter
filhos doentes para criar e, realmente, cumpriu o trato mas não da forma como
eu tinha imaginado. É que naquele dia, ao dizer que não queria que nascessem
crianças deficientes estava a dizer que não queria que o Simeão nascesse mas
agora, depois de o ter dado à vida, nunca teria coragem de lhe dar fim. Qual a lógica
de não querer que ele nascesse e, agora, estar triste por ele ter morrido? Se ainda
hoje mo perguntassem eu diria que não queria que ele viesse ao Mundo porque não
o poderia criar. A questão é que eu acreditei numa história de crianças. quiz
acreditar no impossível, na ideia de que um simples defumadouro, mesmo que
fosse com carvão da Terra Santa, iria evitar que os ovinhos com a doença fossem
transformados em crianças. Mas, no fundo, eu sempre soube que isso era
impossível. No fundo, apenas estava a ser covarde, a atirar para outra pessoa o
problema que tinha que ser resolvido por mim mas que não conseguia enfrentar. Como
fui injusta em lançar à Tia Júlia a praga do fogo do Inferno quando a sua vida,
com o peso de todas as criancinhas que devem ter morrido às suas mãos, sei lá quantas,
já deveria ser um inferno. Estou finalmente a ver que a Tia Júlia é uma vítima de
todo este processo sacrificando-se pelos outros.”
Os
pensamentos continuaram por longas horas intercalados com momentos de desespero
pelo que só por volta das 9h da manhã, já o Sol ia alto, é que a Maria Zé tomou
consciência de que tinha que ir tratar das consequências daquela noite.
Provavelmente iria ser condenada a uma pena qualquer mas, pensando bem, já
outras mortes tinham acontecido e ainda ninguém tinha sido castigado, talvez a chave
estivesse em manter bico calado. Para publicitar o seu desgosto, vestiu-se com
roupa preta e, depois, comeu um bocado de pão de milho com café frio feito de
véspera e partiu para a casa do Sr. Costa a toda a pressa. Pelo caminho foi
pedindo às pessoas que fossem avisar os pais e o marido do sucedido. Chegando a
casa do Sr. Costa, bateu à porta suavemente porque o senhor era temperamental e
não gostava nada de choradeira à porta de sua casa.
–
Sr. Costa, sou a Maria Zé do Zenão. Não se aborreça mas eu preciso que me trate
do funeral do meu Simeão que morreu durante a noite.
Aguardou
um pouco em silêncio, sentada num dos três degraus que permitiam descer da
porta para o nível do caminho, até que o Sr. Costa abriu a porta e,
contrariamente ao que era seu costume, mostrou-se razoavelmente afável.
–
Deixa lá isso mulher que acontece a qualquer um. Entra, entra, que é para isso
que cá estou, entra para falares com a minha filha que vai tratar da papelada e
da roupa. Vou-te dar um licorzinho e entretanto preciso saber o tamanho da urna,
quem te morreu foi o Rúben ou o Simeão.
–
Foi o Simeãozinho, o mais pequenino, só tinha 4 meses.
–
Então, chega uma urna de 80 cm. Tens é que ter consciência que isto vai custar
dinheiro, vai-te custar 200€.
–
Mas Sr. Costa eu não tenho esse dinheiro, estou mesmo com dificuldades. Veja lá
se me faz uma atenção. É que só tenho 75€ comigo.
–
Deixa-te dessa conversa que isto dá despesa com o doutor, o padre, o coveiro e
não nos podemos esquecer do Polícia Vieira que é um comedor. Vou ter que lhe
dar qualquer coisa pois, assim que constar que te morreu a criança durante a
noite, vai aparecer por aí como um abutre. O mais que te posso fazer é dares-me
já esses 75€ e, depois, 10 mensalidades de 10€. Oh Dulcinha, Dulcinha, anda cá,
estás a ouvir? Anda cá para tratares da papelada da criança da Maria Zé que “foi
para junto do Pai”.
“Para
falar do Oolícia Vieira”, pensou a Maria Zé, “é porque o Sr. Costa sabe que a
minha criança morreu de causas não naturais mas vou manter o silencio pois é a
minha única safa.”
A
Dulcinha apareceu, era praticamente um criança, com uns 12 anos, mas a quem
cabia, desde que a mãe tinha morrido de pneumonia havia poucos meses, a tarefa
de fazer a roupa e tratar da papelada das criancinhas que morressem na aldeia. E,
dada a mortandade, isso dava-lhe muito trabalho.
–
Bom dia Sra. Maria Zé, é uma tristeza a sua criança ter morrido mas temos que ser
fortes e andar para a frente. O meu pai vai tratar de fazer a urna e eu vou tratar
do resto, é preciso avisar o Sr. Padre Augusto para tratar da cerimónia religiosa
e o Sr. Mariazinha para tocar o sino e abrir a cova. Tenho ainda de tratar da
certidão de óbito. Poderia ser o Sr. Padre a tratar disso mas, como a morte de
uma criança levanta sempre problemas, o melhor é chamar o Sr. Dr. Acácio. Acha
bem eu fazer uma roupinha toda em branco com uma asinhas? É o que se usa
normalmente nos anjinho. Tenho aqui um pano de seda e penas, tudo vindo de
Paris. Vai ver que fica muito bonito.
– Ai
menina Dulcinha, o que me aconteceu foi uma tragédia. Nem sei o que me vai
acontecer agora. É que a criança morreu em parte por meu desmazelo – cala-te
burra, pensou ela.
–
Vamo-nos esquecer da noite de ontem porque já nada se pode fazer para trazer a
criança de volta à vida. E foi a senhora que a deu à vida, que teve as dores de
parto, que lhe deu de mamar pelo que sabia, mais do que ninguém, o que era
melhor para ela. Agora que está morta, tem que olhar em frente e lembrar-se do Rúben
que precisa de si. Temos que olhar ao principio e ao fim e não ao que aconteceu
pelo meio. Se há uns meses tinha um filho e hoje tem um filho, pelo meio tem que
pensar que nada aconteceu. Agora tem que ser forte e não fazer como a mulher de
Lot que olhou para trás e ficou transformada em estátua de sal.
Parecia
estranho uma criança de apenas 12 anos ter aquela força toda mas, de facto, aquelas
frases não passavam da repetição de uma cassete que tinha ficado na memória das
conversas que ouvia da sua mãe.
–
Dê-me agora a chave de sua casa, vá até à igreja rezar e aproveite para se
confessar com o Sr. Padre que é uma pessoa muito sábia e compreensiva. Eu vou a
sua casa com o Sr. Dr. Acácio e, depois das 13h, pode aparecer lá que já estará
tudo pronto. Aproveite para pedir ao Sr. Mariazinha para tocar o sino ainda de
manhã para que o funeral possa ser na missa de hoje das 18h e para abrir uma
meia campa. É melhor fazer o funeral ainda hoje porque está muito calor e a
criança morta pode tornar-se um problema de saúde pública.
A
Dulcinha acompanhou a Maria Zé à porta e chamou por uma criança que andava por
lá a brincar, deu-lhe meio euro e mandou-a ir dizer ao Sr. Dr. Acácio para às
11h ir ter a casa da Maria Zé pois era precisa uma certidão de óbito para uma criança
que tinha morrido durante a noite. Voltou para dentro e agarrou-se à costura e,
num ápice, aldrabou a roupinha com as asinhas que foi buscar a uma caixa de
cartão. Depois, foi à oficina do pai e, estando a urna já pronta, forrou-a por
dentro com pano também branco. Agora, era só pegar em tudo e rumar a casa da Maria
Zé.
Capítulo seguinte (5 - A casa)
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