Crime e Redenção
Pedro Cosme Vieira
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Algures
na Europa, faz agora um pouco mais de 150 anos, um pequeno povo foi massacrado
e expulso do local em que habitualmente vivia por ser portador de uma doença
qualquer. Os sobreviventes desse crime passaram a viver num monte agreste
propriedade do Arquiduque e, desde então, mesmo vivendo com privações e pesados
impostos, conseguiram crescer, multiplicar-se e começar a colonizar o mundo. No
entanto, mesmo usando como escala o que aconteceu há 150anos, um crime de
dimensões inimagináveis está prestes a acontecer.
O
bom desta história é que todo o crime pode ser redimido. Ou talvez não.
1 – A anomalia
A
família da Maria Zé era portadora de uma anomalia talvez genética que fazia com
que os filhos pudessem nascer com uma doença muito incapacitante. Por causa dessa
possibilidade, apenas teve como pretendente o Francisco, um primo muito chegado,
e que também era portador dessa doença maldita. Mas, como só se poderiam casar
se se comprometessem a dar cumprimento ao mandamento “Crescei e
Multiplicai-vos”, a decisão quanto a casar teria que ser muito ponderada . Mas
os vizinhos diziam-lhes que, “Se outras pessoas se casaram e tiveram filhos
saudáveis, também vocês se podem casar e ter filhos saudáveis desde que
façam o “Defumadouro da Terra Santa”.
O Defumadouro
era um estribilho que ouviam desde que eram crianças, “Vocês nasceram saudáveis
porque os vossos pais fizeram o Defumadouro da Terra Santa”, mas que nenhum
adulto conseguia explicar. Quando surgia a pergunta “Mamã, o que é o Defumadouro
da Terra Santa?”, os adultos desconversavam ou diziam “Quando as pessoas da
nossa aldeia querem ter filhos, para afastar a maldição têm que fazer o Defumadouro.
Quem fizer o Defumadouro não vai ter filhos deficientes mas só vais compreender
isso, o que quer dizer ‘não vais ter’ quando Deus quiser que tenhas filhos”.
Estando
casados de fresco e tendo, segundo as palavras do padre Augusto, a obrigação de
ter filhos, começaram então a fazer umas investigações pelas pessoas aldeia.
Muito em segredo todos diziam o mesmo, “Falem com a vossa tia Júlia mas não
digam que fui eu que disse o nome dela”. Então, não fosse engravidar antes do
defumadouro, um dia a Maria Zé e o Francisco foram ao casebre da Tia Júlia que
era irmã da mãe da Maria Zé e prima do Francisco.
A vida
da Júlia tinha sido trágica. Primeiro, tinha casamento marcado com o Abel, um
jovem muito querido por toda a gente, inteligente e trabalhador mas que, nas vésperas
do casamento e ainda jovem, foi assassinado por ladrões de gado que vieram do Vale.
Ficou anos de luto que, com muita dificuldade, conseguiu ultrapassar e aceitar
casar-se com um primo em segundo grau da parte do pai. Se o casamento aconteceu,
poucos anos depois, o marido morreu num acidente estúpido qualquer que ninguém consegue
explicar. Nunca chegou a ter filhos e agora, com um pouco mais de 60 anos,
vivia só, já fora da povoação, numa pequeníssima barraca que, em tempos, tinha servido
de galinheiro. Os seus poucos rendimentos vinham das suas 5 ovelhas e 2 cabras
e do trabalho agrícola que as suas poucas forças ainda lhe permitiam fazer. A sua
pobreza era tanta que o foral que tinha que pagar anualmente ao Arquiduque era
conseguido por um peditório entre os familiares mais próximos.
Havia
algo de estranho em volta da Tia Júlia, apesar de estar sempre presente nas
conversas, ninguém a queria por visita. Quando algo corria mal, por exemplo, uma
ovelha desaparecia no monte, a chuva tardava em aparecer ou o vinho azedava no
pipo, havia sempre alguém que dizia, “Antes isso que uma visita da Tia Júlia”.
Os
recém casados decidiram então falar à mulher que ainda era sua parente chegada.
Um dia, ao fim da tarde, foram os dois a sua casa, melhor dizendo, barraca. Como
não a encontraram na barraca, chamaram por ela em voz alta que respondeu lá do meio
dos pés de milho onde estava a trabalhar.
–
Quem chama por mim?
–
Boa tarde, Tia Júlia, sou eu, a sua sobrinha, a Maria Zé.
–
Ai a minha sobrinha que não vejo desde pequenina, já aí vou – pousou o que
estava a fazer e lá foi no seu vagar. Apareceu toda vestida de preto, com
cabeça coberta por um lenço também preto que amarrava por baixo do queixo e por
um grande chapéu de palha para proteger ainda mais dos raios do Sol. Os longos
anos de trabalho no campo já tinham feito os seus estragos principalmente nas
costas pelo que caminhava com uma visível inclinação do corpo para a frente e os
dentes já tinham ido todos à sua vida.
–
Boa tarde tia, é verdade que já não nos vemos há muito tempo mas estou a ver
que está igual – um acto de misericórdia pois estava visivelmente muito mais
envelhecida, quase cadavérica – este aqui é o Francisco. Como já deve saber,
casei-me aqui com o primo Francisco, e, porque o padre Augusto diz que temos
que ter filhos, na sua maluqueira “Uns 12 como teve o Jacob”, viemos cá para
lhe falar sobre o Defumadouro que evita termos filhos com a doença.
A senhora
ajoelhou-se, olhou para o Céu e começou a rezar em voz alta “Liberta-me Senhor
deste fardo que tenho carregado ao longo da minha já longa vida” – é que
naquela miséria, não era frequente uma pessoas ultrapassar os 60 anos de idade.
– “Indica outra alma para assumir esta ingrata missão pois eu já estou cansada
de sofrer.”
O casal
ficou admirado da reacção da senhora e a Maria Zé avançou com umas palavras de
conforto“Tia Júlia não desespere que nós só estamos aqui para lhe pedir que nos
faça o Defumadouro às crianças, é só um fumosito.”
– Mas
vocês não sabem da maldição que a nossa aldeia carrega? Não será melhor optarem,
como eu fiz, por não ter filhos?
– Sim
tia, já ouvimos falar disso mas o certo é que, muita gente fala da doença mas nós
vemos que ninguém tem filhos doentes. E nós não somos diferentes dos outros,
nós queremos mesmo ter filhos não só para respeitar os mandamentos de Deus mas
também porque não queremos acabar os nossos dias sós e abandonados como a Tia
Júlia – A Maria Zé vendo a expressão de tristeza na cara da tia teve um imediato
arrependimento –desculpe a minha franqueza que não era para a entristecer. Se
fosse para serem doentes, nós desrespeitaríamos o que diz o Padre Augusto e não
tínhamos filhos porque, como somos pobres, não os poderíamos criar. Mas, como o
povo diz que o Defumadouro que a Tia Júlia sabe fazer evita isso, pensamos, com
a ajuda de Deus, estar em condições de criar duas ou três crianças.
– Mas
têm que saber que o Defumadouro é uma coisa séria. Pensem bem pois, se se
comprometerem comigo, terão que o assumir até às últimas consequências, sejam
elas quais forem, sem nada dizer nem perguntar. Aviso-vos que, na minha mão, o
defumadouro não permite que os filhos doentes vivam mas apenas isso, o
defumadouro não é uma prática médica, não cura, apenas evita.
–
Mas tia Júlia, é isso mesmo. Nós não queremos que Deus permita que tenhamos que
criar crianças doentes.
– Ouçam
bem o que me estão a pedir pois, depois, não podem vir dizer que eu vos enganei.
Estão-me a dizer que não querem criar crianças com a doença.
–
Pois Tia Júlia, é isso mesmo que lhe estamos a pedir pois nem teríamos como as
criar.
–
Mas fixem bem o que lhes vou dizer. Sejam quais forem as circunstâncias, nunca
poderão rasgar o pacto que vão fazer comigo e com Deus, nunca, em circunstância
alguma. O pacto que vai materializar a vossa vontade de ter filhos saudáveis e
evitar que tenham que criar filhos doentes é irrevogável. Todo e qualquer filho
que venham a ter terá que ser sujeito ao Defumadouro, todo e qualquer, ouçam
bem, todo e qualquer.
–
Mas tia, não lhe estamos a pedir nada de extraordinário, apenas que evite que
venhamos a ter filhos doentes, nada mais.
–
Não pensem que não é nada de extraordinário, o que me pedem é terrível. Vão agora
para casa pensar e se, daqui a uns dias ou meses, mantiverem a vontade de ter
filhos e os sujeitar ao Defumadouro, voltem cá para jurar perante Deus que vão
respeitar o pacto até às últimas consequências. Pensem bem porque têm que me
dar carta-branca e, aconteça o que acontecer, viver as consequências em
silêncio, nunca mais dizendo nem perguntando nada a ninguém.
A
Maria Zé achou estranho tanto drama mas, pensou, “Concerteza que é apenas para
fazer render o seu peixe. Estas coisas do bruxedo têm que estar envoltas em
algum dramatismo para que as pessoas abram os cordões à bolsa”. Sabendo que a
senhora vivia muito mal, deixaram o litro de azeite e a meia dúzia de ovos que
tinham levado e ainda meteram, discretamente, uma nota de 5€ no bolso do seu
avental. Despediram-se e foram embora.
Ver capítulo seguinte (2- O defumadouro)
Ver capítulo seguinte (2- O defumadouro)
4 comentários:
Parece que o prof. de economia é bem mais criativo no romance do que nas análises e nas soluções sobre problemas económicos.
Por exemplo : aquela estória de construir uma Cidade para os Pretos, poderia ter sido aproveitada para explicar à Direitalha portuguesa (PPD, CDS e PS) que era possível enfrentarmos a crise com 2 moedas, uma só nossa e o euro.
Isso sim, teria sido um excelente exercício de economia.
Os srs. economistas explicaram centenas de vezes, porque é que a Troika tinha que vir e porque é que tínhamos que levar com cortes profundos de modo a destruirmos uns 25% da nossa riqueza. Tudo isto foi explicadinho, tim-tim por tim-tim, para melhor aceitarmos as porradas que íamos levar.
Bom, depois… em 2015, o BCE acabou por tomar consciência que essas teorias estavam erradas e decidiu injectar triliões de euros, provocando algo inédito, juros negativos! Essa, não lembra a nenhum economista!
Afinal havia outros caminhos possíveis para enfrentarmos a crise da dívida soberana ! Enfim, coisas de economistas Doutorados que não acertam uma! São piores que os astrólogos !
Alvim,
Eu já escrevi vários posts sobre a dupla moeda (que existe, por exemplo, em Marrocos). Mas pode ver um tratamento mais "aprofundado" da questão euro-escudo lendo este documento:
http://wps.fep.up.pt/wps/wp423.pdf
Ou em inglês:
http://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=2034839
1ab,
pc
Mais um sinal: o próximo episódio sai num 13 de Maio.
Até 4ªf.
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