quarta-feira, 22 de julho de 2015

23 - O passeio

Crime e Redenção 
Pedro Cosme Vieira
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Ver o capítulo anterior (22 - O estrangeiro)    





23 – O passeio
A conversa ao almoço foi animada com o Sr. Dessilva a dizer repetidamente “A América é um colosso.” Relatou como em Nova York as casas são altas, algumas com mais de 200 metros de altura, como os comboios andam por debaixo do chão e como as ruas são pavimentadas e estão continuamente cheias de pessoas e de carros a motor. Descreveu ainda as fabricas onde trabalham milhares de pessoas e os campos de trigo e de milho a perder de vista. Na conversa, o Sr. Costa propôs que, ao serão, houvesse uma reunião com a comissão que estava a tratar do problema da emigração para poderem discutir o assunto – “É que as pessoas não estão com muita fé na nossa capacidade em arranjar o dinheiro necessário para que as pessoas possam ir para a América.” E assim ficou combinado.
Depois do almoço, o Sr. Dessilva foi descansar um pouco. Já andava há várias semanas em viagem e, como já não era um jovem, precisava de refazer as energias. No entretanto chegaram os baús, traziam muita roupa nova e bonita, tudo de tons claros, que a Sr.a Celeste arejou e guardou nos armários do quarto e também traziam muitos livros, disse o Sr. Dessilva que eram “Para ajudar eu no ensinar do inglês e para jovens ver fotografias e mapas de cidade no América. Ver no sítio ir na viver.”
Depois de terminar a sua sesta, o Sr. Dessilva mostrou vontade de dar uma volta exploratória pela aldeia “Sr.a Celeste poder arranjar no eu um criança que acompanhar para explicar nas ruas e apresentar eu nas pessoas?”
Aquela figura altaneira, toda vestida impecavelmente e de branco, contrastava totalmente com as pessoas da aldeia que mantinham uma postura arqueada a mostrar submissão e que vestiam roupas escuras e velhas, todas remendadas e com buracos. As mulheres traziam um lenço a tapar as cabeças e os homens um chapéu de aba larga, pretos e longas barbas. Boa tarde para aqui, boa tarde para ali e o Sr. Dessilva foi calcorreando todos os becos da aldeia que, porque na sua génese tinha sido um amontoar desordenado de barracas, eram estreitos e cheios de curvas e cotovelos, sem qualquer ordem, alguns tão estreitos que, quando uma pessoa cruzava por outra, uma dela tinha que se encostar à parede de uma das casas. Depois de já terem percorrido todos os caminhos e vielas, o americano fez um pedido “Meu sócio Jonas me dizer que há uma pessoa chamada Júlia de Zenão, jovem conhecer ela? Me poder levar na casa dela?”
– Conheço, conheço, toda a gente conhece mas não é uma pessoa com quem as pessoas gostem de se dar por causa de uns boatos que correm por ai.
– E que boatos ser n’ai?
– Eu não sei bem pois ninguém quer falar disso, mas dizem que faz defumadouros, que é uma bruxa.
– Eu querer conhecer na ela, vamos em casa dela?
– Ela não tem casa, vive numa barraca, a mulher vive num galinheiro. Aquilo nem dá para uma pessoa estar de pé e não cabe lá mais do que uma cama e uma pequena fogueira para cozinhar. Vive retirada da aldeia uns 500m mas ainda dentro do muro. Mas Sr. Dessilva, eu tenho medo de ir lá, posso ir até lá perto e depois o Sr. Dessilva vai por sua conta e risco.
– Vamos então lá.
Lá foram os dois no seu vagar, viela para aqui, viela para acolá até que saíram da aldeia por um caminho de terra batida também cheio de curvas “Fica ali atrás daquelas macieiras.” Caminharam mais uns minutos e chegaram a uns 50 metros da porta da barraca, altura em que o rapaz parou. “Eu fico aqui que tenho medo, agora o Sr. está por sua conta e risco. Ela só está na barraca à noite pois não cabe lá dentro, deve estar a trabalhar no campo. Ó Ti Júlia, Ti Júlia, Onde é que está?” gritou o rapaz. “Estou aqui, estou aqui no meio do milho.”
– Sr. Dessilva, ela está lá mais à frente, “Venha então cá que está aqui um senhor que a quer ver, é um americano.”
O Dessilva foi caminhando para a barraca e, simultâneamente, os pés de milho foram abanando até que saiu de lá uma pessoa “Ti Júlia olhe ai essa pessoa – gritava o rapaz de longe – é um americano que chegou hoje à aldeia e que quer falar consigo.”
A Júlia chegou sempre com o olhar fixo no chão. “Sr.a ser Júlia Zenão? É senhora irmã de Isabel Zenão?” perguntou o Dessilva.
– Sim, sim, sou eu mesma, irmã da Isabel e de outros que andam por aí, já nem sei quantos irmãos tenho vivos, a minha memória está muito gasta.
– Eu chamar Newman Dessilva e venho do América. Eu ser sócio de Jonas, cunhado de Isabel, se lembrar de Jonas? Ele se lembra de senhora e me disse para ver senhora. Dizer ele que amava senhora.
– Ai meu Deus, o Jonas, era tão bom rapaz – e a velhota começou a chorar – quem me dera voltar a esses tempos, quando éramos jovens e inocentes, quando a miséria parecia não existir. Isso que ele disse não passou de uma brincadeira de crianças, um sonho que acabou da pior maneira. Ele sempre soube que o meu coração estava preso ao amigo dele, ao Abel, e que essa história acabou da pior maneira possível. Mas o Sr. não veio cá para ouvir toleiras de uma velha sobre os amores que sentiu na vida. Não veio dessas terras distantes para ver uma velha que apenas está à espera do dia em que há-de dar contas a Deus.
– Não, não, eu querer falar na senhora, ouvir na senhora e dizer no Jonas como estar. Senhora falar em Abel, Jonas também falar em Abel, quem ser Abel?
– O Abel era o amor da minha vida, estávamos talhados um para o outro mas a morte levou-o cedo. Quando ainda não tinha sequer feito os 18 anos, já lá vão bem mais de 40, os da aldeia do Vale atacaram os nossos pastores que estavam no monte e dizem que ele morreu.
– Atacaram-nos assim sem mais nem menos?
– Deve ter sido para roubar as ovelhas. Muitos conseguiram fugir mas outros foram apanhados. Depois do ataque as pessoas percorreram os montes à procura de sinais de vida. Apareceram vários feridos e quatro mortos. O Abel nunca apareceu, nem ferido nem morto. Percorri esses montes todos para cima e para baixo à procura de uma pista, com a esperança de que estivesse algures ferido e sem poder pedir socorro. Fui eu quem encontrou um dos mortos, o Alberto, mas nunca encontrei nada que se relacionasse com o Abel, nem roupa nem sequer os cães que lhe tinham uma lealdade cega. Passei anos a chorar, a imaginá-lo a morrer abandonado algures no monte, comido pelos lobos. O Jonas até podia amar-me mas sabia que Deus me tinha destinado para viver a vida com o Abel. Não sei o que fiz a Deus de tão mau pois fui castigada como nunca pensei ser possível.
– Me fale também desse Alberto, porque foi Júlia que encontrou Alberto?
– O Alberto era um amigo do Abel, muito amigo, o Jonas, o Abel e o Alberto andavam sempre juntos e ainda eram primos. Quando o Jonas partiu, os dois ficaram ainda mais próximos. Trabalhavam ambos como pastores e ambos desapareceram no dia do ataque. Fui eu que o encontrei porque o seu corpo estava muito afastado do local onde estavam os outros, talvez mais de 10km para a Norte, já depois do pico da montanha. Nunca compreendi o que se passou, nós sabemos que o ataque foi feito por pessoas do Vale porque foram avistados mas, quando retornaram, não traziam as 200 ovelhas que desapareceram. Talvez algum deles as tenha levado para Norte mas não compreendo o porquê, porque atravessar a montanha que é muito difícil quando poderiam ter trazido as ovelhas roubadas para baixo. E o Alberto estava nesse caminho, talvez o tenham obrigado a levar as ovelhas para Norte e, depois, o tenham matado, não sei, enquanto que os outros foram mortos à pancada, o Alberto só tinha uma facada no coração, não sei o que aconteceu.
O Dessilva como que ficou congelado a pensar naquela história mas, de repente, como que acordou.
– Foi uma tragédia. mas ir falar agora de boas notícias, quando Isabel deu notícias de Júlia, Jonas ficou muito comovido. Sabe que ele mandou dinheiro e que eu estar aqui por causa de Júlia? E mandou 1000€ para Isabel dar na Júlia.
– Eu nunca imaginei que o Jonas que mantivesse na sua memória, foi uma surpresa, sempre pensei que se tivesse esquecido de que nós existíamos ou até mesmo que já tivesse morrido, que não tivesse tido sorte na vida. O dinheiro fez-me muito jeito, em agradecimento tenho rezado todos os dias para que Deus o ajude ainda mais. Veja, veja aqui estas tábuas que estão aqui que são para aumentar a minha barraca, veja este remendo no telhado, veja esta janela nova que vou ter, veja os melhoramentos que fiz no curral das ovelhas e esta roupa. Foi tudo pago com esse dinheiro e ainda sobrou algum para os dias mais difíceis.

No entretanto o Sol começou-se a aproximar-se do horizonte pelo que estava na hora de partir. “Sr.a Júlia, gostei muito falar no senhora, compreender Jonas a ter amado, senhor ser encantadora, outro dia falar mais pois jantar ser nas 19h para ter reunião nas 20h.” 
– Não passo de uma velha corroída pelos anos.

Capítulo seguinte (24 - A reunião)

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