Crime e Redenção
Pedro Cosme Vieira
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Ver o capítulo anterior (22 - O estrangeiro)
23 – O passeio
A
conversa ao almoço foi animada com o Sr. Dessilva a dizer repetidamente “A
América é um colosso.” Relatou como em Nova York as casas são altas, algumas
com mais de 200 metros de altura, como os comboios andam por debaixo do chão e
como as ruas são pavimentadas e estão continuamente cheias de pessoas e de carros
a motor. Descreveu ainda as fabricas onde trabalham milhares de pessoas e os
campos de trigo e de milho a perder de vista. Na conversa, o Sr. Costa propôs
que, ao serão, houvesse uma reunião com a comissão que estava a tratar do
problema da emigração para poderem discutir o assunto – “É que as pessoas não
estão com muita fé na nossa capacidade em arranjar o dinheiro necessário para
que as pessoas possam ir para a América.” E assim ficou combinado.
Depois
do almoço, o Sr. Dessilva foi descansar um pouco. Já andava há várias semanas
em viagem e, como já não era um jovem, precisava de refazer as energias. No entretanto
chegaram os baús, traziam muita roupa nova e bonita, tudo de tons claros, que a
Sr.a Celeste arejou e guardou nos armários do quarto e também traziam muitos
livros, disse o Sr. Dessilva que eram “Para ajudar eu no ensinar do inglês e
para jovens ver fotografias e mapas de cidade no América. Ver no sítio ir na
viver.”
Depois
de terminar a sua sesta, o Sr. Dessilva mostrou vontade de dar uma volta exploratória
pela aldeia “Sr.a Celeste poder arranjar no eu um criança que acompanhar para
explicar nas ruas e apresentar eu nas pessoas?”
Aquela
figura altaneira, toda vestida impecavelmente e de branco, contrastava
totalmente com as pessoas da aldeia que mantinham uma postura arqueada a
mostrar submissão e que vestiam roupas escuras e velhas, todas remendadas e com
buracos. As mulheres traziam um lenço a tapar as cabeças e os homens um chapéu
de aba larga, pretos e longas barbas. Boa tarde para aqui, boa tarde para ali e
o Sr. Dessilva foi calcorreando todos os becos da aldeia que, porque na sua
génese tinha sido um amontoar desordenado de barracas, eram estreitos e cheios
de curvas e cotovelos, sem qualquer ordem, alguns tão estreitos que, quando uma
pessoa cruzava por outra, uma dela tinha que se encostar à parede de uma das
casas. Depois de já terem percorrido todos os caminhos e vielas, o americano
fez um pedido “Meu sócio Jonas me dizer que há uma pessoa chamada Júlia de
Zenão, jovem conhecer ela? Me poder levar na casa dela?”
–
Conheço, conheço, toda a gente conhece mas não é uma pessoa com quem as pessoas
gostem de se dar por causa de uns boatos que correm por ai.
–
E que boatos ser n’ai?
–
Eu não sei bem pois ninguém quer falar disso, mas dizem que faz defumadouros, que
é uma bruxa.
– Eu
querer conhecer na ela, vamos em casa dela?
– Ela
não tem casa, vive numa barraca, a mulher vive num galinheiro. Aquilo nem dá
para uma pessoa estar de pé e não cabe lá mais do que uma cama e uma pequena
fogueira para cozinhar. Vive retirada da aldeia uns 500m mas ainda dentro do
muro. Mas Sr. Dessilva, eu tenho medo de ir lá, posso ir até lá perto e depois o
Sr. Dessilva vai por sua conta e risco.
–
Vamos então lá.
Lá
foram os dois no seu vagar, viela para aqui, viela para acolá até que saíram da
aldeia por um caminho de terra batida também cheio de curvas “Fica ali atrás
daquelas macieiras.” Caminharam mais uns minutos e chegaram a uns 50 metros da porta
da barraca, altura em que o rapaz parou. “Eu fico aqui que tenho medo, agora o
Sr. está por sua conta e risco. Ela só está na barraca à noite pois não cabe lá
dentro, deve estar a trabalhar no campo. Ó Ti Júlia, Ti Júlia, Onde é que
está?” gritou o rapaz. “Estou aqui, estou aqui no meio do milho.”
–
Sr. Dessilva, ela está lá mais à frente, “Venha então cá que está aqui um
senhor que a quer ver, é um americano.”
O
Dessilva foi caminhando para a barraca e, simultâneamente, os pés de milho
foram abanando até que saiu de lá uma pessoa “Ti Júlia olhe ai essa pessoa – gritava
o rapaz de longe – é um americano que chegou hoje à aldeia e que quer falar
consigo.”
A
Júlia chegou sempre com o olhar fixo no chão. “Sr.a ser Júlia Zenão? É senhora
irmã de Isabel Zenão?” perguntou o Dessilva.
–
Sim, sim, sou eu mesma, irmã da Isabel e de outros que andam por aí, já nem sei
quantos irmãos tenho vivos, a minha memória está muito gasta.
–
Eu chamar Newman Dessilva e venho do América. Eu ser sócio de Jonas, cunhado de
Isabel, se lembrar de Jonas? Ele se lembra de senhora e me disse para ver
senhora. Dizer ele que amava senhora.
–
Ai meu Deus, o Jonas, era tão bom rapaz – e a velhota começou a chorar – quem
me dera voltar a esses tempos, quando éramos jovens e inocentes, quando a miséria
parecia não existir. Isso que ele disse não passou de uma brincadeira de
crianças, um sonho que acabou da pior maneira. Ele sempre soube que o meu
coração estava preso ao amigo dele, ao Abel, e que essa história acabou da pior
maneira possível. Mas o Sr. não veio cá para ouvir toleiras de uma velha sobre os
amores que sentiu na vida. Não veio dessas terras distantes para ver uma velha
que apenas está à espera do dia em que há-de dar contas a Deus.
–
Não, não, eu querer falar na senhora, ouvir na senhora e dizer no Jonas como
estar. Senhora falar em Abel, Jonas também falar em Abel, quem ser Abel?
– O
Abel era o amor da minha vida, estávamos talhados um para o outro mas a morte
levou-o cedo. Quando ainda não tinha sequer feito os 18 anos, já lá vão bem mais
de 40, os da aldeia do Vale atacaram os nossos pastores que estavam no monte e
dizem que ele morreu.
–
Atacaram-nos assim sem mais nem menos?
– Deve
ter sido para roubar as ovelhas. Muitos conseguiram fugir mas outros foram
apanhados. Depois do ataque as pessoas percorreram os montes à procura de
sinais de vida. Apareceram vários feridos e quatro mortos. O Abel nunca
apareceu, nem ferido nem morto. Percorri esses montes todos para cima e para
baixo à procura de uma pista, com a esperança de que estivesse algures ferido e
sem poder pedir socorro. Fui eu quem encontrou um dos mortos, o Alberto, mas
nunca encontrei nada que se relacionasse com o Abel, nem roupa nem sequer os
cães que lhe tinham uma lealdade cega. Passei anos a chorar, a imaginá-lo a
morrer abandonado algures no monte, comido pelos lobos. O Jonas até podia
amar-me mas sabia que Deus me tinha destinado para viver a vida com o Abel. Não
sei o que fiz a Deus de tão mau pois fui castigada como nunca pensei ser
possível.
–
Me fale também desse Alberto, porque foi Júlia que encontrou Alberto?
–
O Alberto era um amigo do Abel, muito amigo, o Jonas, o Abel e o Alberto andavam
sempre juntos e ainda eram primos. Quando o Jonas partiu, os dois ficaram ainda
mais próximos. Trabalhavam ambos como pastores e ambos desapareceram no dia do
ataque. Fui eu que o encontrei porque o seu corpo estava muito afastado do
local onde estavam os outros, talvez mais de 10km para a Norte, já depois do
pico da montanha. Nunca compreendi o que se passou, nós sabemos que o ataque
foi feito por pessoas do Vale porque foram avistados mas, quando retornaram, não
traziam as 200 ovelhas que desapareceram. Talvez algum deles as tenha levado
para Norte mas não compreendo o porquê, porque atravessar a montanha que é
muito difícil quando poderiam ter trazido as ovelhas roubadas para baixo. E o
Alberto estava nesse caminho, talvez o tenham obrigado a levar as ovelhas para
Norte e, depois, o tenham matado, não sei, enquanto que os outros foram
mortos à pancada, o Alberto só tinha uma facada no coração, não sei o que
aconteceu.
O Dessilva
como que ficou congelado a pensar naquela história mas, de repente, como que acordou.
– Foi
uma tragédia. mas ir falar agora de boas notícias, quando Isabel deu notícias de Júlia,
Jonas ficou muito comovido. Sabe que ele mandou dinheiro e que eu estar aqui por
causa de Júlia? E mandou 1000€ para Isabel dar na Júlia.
– Eu
nunca imaginei que o Jonas que mantivesse na sua memória, foi uma surpresa,
sempre pensei que se tivesse esquecido de que nós existíamos ou até mesmo que
já tivesse morrido, que não tivesse tido sorte na vida. O dinheiro fez-me muito
jeito, em agradecimento tenho rezado todos os dias para que Deus o ajude ainda mais.
Veja, veja aqui estas tábuas que estão aqui que são para aumentar a minha barraca,
veja este remendo no telhado, veja esta janela nova que vou ter, veja os
melhoramentos que fiz no curral das ovelhas e esta roupa. Foi tudo pago com
esse dinheiro e ainda sobrou algum para os dias mais difíceis.
No
entretanto o Sol começou-se a aproximar-se do horizonte pelo que estava na hora de
partir. “Sr.a Júlia, gostei muito falar no senhora, compreender Jonas a ter
amado, senhor ser encantadora, outro dia falar mais pois jantar ser nas 19h para ter reunião nas 20h.”
– Não passo de uma velha corroída pelos anos.
Capítulo seguinte (24 - A reunião)
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