Crime e Redenção
Pedro Cosme Vieira
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Ver o capítulo anterior (29 - A hora)
30 – A facada
Como
era a véspera da partida, era grande azáfama em toda a aldeia. Preparar os
mantimentos, arrear os burros, despedir dos familiares que ficavam. O Dessilva
também andou toda a manhã atarefado mas, depois do almoço, decidiu ir visitar a
Júlia. Estava sol mas frio, como era normal no Inverno, com os telhados e os
campos cobertos de uma camada fina de neve, um cheiro intenso mas agradável a
fumo que saia pelas frestas das casas. Mas, naquele casaco americano não
entrava frio. Lá foi andando no seu vagar como se estivesse a saborear pela
última vez aquela paisagem. Quando chegou à casita da Júlia, chamou por ela
“Júlia, Júlia, estás ai dentro?”
A
porta abriu-se “Estou mesmo aqui, Sr. Dessilva, entre, entre, mas vai ficar
cheio de fumo”.
Realmente,
dentro da casa, era uma fumarada total. A casita que se reduzia a uma divisão
pequena outrora própria para as galinhas, não tinha chaminés, apenas uma telha
levantada, pelo que estava completamente cheia de fumo da fogueira que ardia
encostada a uma das paredes. “O Sr. Dessilva sente-se neste mocho e mantenha a
cabeça baixa para não apanhar tanto fumo”
–
Boa tarde Júlia, este fumo tra´z-me à memoria quando era pequeno, estas tardes
frias mas solarengas, estas carnes dependuradas a defumar, este cheiro a folhas
de loureiro ...
–
O Sr. Dessilva só pode estar a gozar-me! Como é que se pode lembrar disso
quando nasceu na América? Não me diga que acredita nas reencarnações?
–
Tem Razão Júlia, tem razão, estava já a delirar mas, em vez de estarmos aqui
fechados a defumar, porque não vamos caminhar um pouco por ai que eu tenho que
falar à Júlia uma coisa que tenho aqui guardada, vamos no nosso vagar como quem
vai a namorar.
–
O sr. Dessilva é uma maroto, quem é que ia agora querer namorar com uma velha
como eu? Mas vamos então falar que o Sr. Dessilva é muito bom conversador e lá
fora, mesmo com o frio, o tempo está agradável.
–
Vamos então. Sabe que eu gostei muito daquela história de não ter acreditado na
morte do Abel. Diga-me então porque é que nunca acreditou na sua morte.
–
É que há coisas que não batem certo mas, ao fim de uns tempos, acabei por me
calar pois vi que ninguém acreditava em mim, chegaram mesmo a dizer que eu
estava maluca, cega pelo amor que lhe tinha. Mas vamos aos factos, primeiro, os
cães tinham a coleira de espetos pelo que tinham que aparecer, o Abel nunca ia
para o monte sem as meter nos cães e eu, nesse mesmo dia, vi que os cães saíram
daqui com as coleiras. Depois, nunca apareceu o corpo nem a roupa. Terceiro, eu
vi pelas pegadas que as ovelhas foram para o Norte e, exactamente no caminho
que seguiram as ovelhas, estava o Alberto morto, com os seus cães a guardá-lo e
os lobos não comeram nenhum dos cães do Alberto. Como é que o Sr. Dessilva
explica isto? Como é que os cães do Abel desapareceram e os do Alberto ficaram
lá a guardar o corpo?
– Realmente,
isso não parece bater certo mas eu vou-lhe explicar o que eu penso sobre o que
aconteceu. Quando começou o ataque, estavam no monte milhares de ovelhas e mais
de cem pastores. O ataque começou ainda o dia mal tinha nascido e, realmente,
tinha como objectivo o roubo das ovelhas. Mas, quando os atacantes foram
avistados, os pastores fugiram cada um para seu lado com as suas ovelhas pelo
que os atacantes só conseguiram cercar aqueles 3 pastores que apareceram mortos
na zona do planalto. Depois, apesar de terem conseguido as ovelhas dos desse 3
pastores mais algumas que se tresmalharam dos outros rebanhos, talvez umas 200
ou 250, como não traziam cães nem eram pastores, não conseguiram mais do que
matar algumas e fazer com que as outras fugissem pelo monte tresmalhadas uma
para cada lado. No final, não conseguiram roubar nenhuma ovelha e foram-se
embora de volta ao Vale.
–
Mas então, se diz que os do Vale não roubaram as ovelhas, para onde é que foram
essas 200 ovelhas? E ainda não explicou como morre o Alberto.
–
Calma! O Jonas estava com o Alberto mais acima no monte, talvez uns 5 km acima,
e viu tudo o que estava a acontecer. Como estava eu a dizer, como os atacantes
não conseguiam juntar as ovelhas, acabaram por desistir e irem-se embora, foi
quando foram avistas aqui da aldeia a regressar ao Vale.
–
Até aí está tudo bem, realmente, quando voltaram não levavam ovelhas com eles,
mas ainda não estou a ver como a história do Abel e do alberto encaixam ai. Se
eles se foram embora e o Alberto e o Abel estavam 5km acima bem vivos, porque é
que as ovelhas desapareceram, o Abel nunca apareceu e o Alberto apareceu morto?
–
Avancemos mais um pouco, o Abel não sabia o que se iria passar pelo que, sendo
um homem de coragem, entregou as suas ovelhas à guarda do Alberto, umas 50 ou
60, e disse-lhe “Foge para Norte, leva as ovelhas até ao outro lado do monte e
espera lá por mim que eu vou tentar salvar os nossos colegas que estão a ser
atacados”. Depois, o Abel chamou os seus 4 cães e correu monte abaixo para
tentar socorrer os colegas que tinham sido apanhados mas, quando lá chegou, viu
que já estavam mortos. Então, mais não podia fazer do que juntar as ovelhas que
andavam extraviadas. Como era um bom pastor e os seus cães estavam bem
treinados, mandou correr um por aqui, outro por acolá e conseguiu, ao fim de
algum tempo, juntar quase todas as ovelhas que estavam vivas, conseguiu juntar mais
de 200. Pensou um minuto e, como os atacantes podiam estar por ali escondidos à
espera para o emboscar e o Alberto tinha caminhado para Norte, decidiu
levá-las monte acima para se juntar com o Alberto e, assim, passar a noite no
monte e voltar apenas no dia seguinte. O combinado era o Alberto parar com as
ovelhas uns 10km dali, já do outro lado da cumieira pelo que o Abel começou a
guiar as ovelhas para o local combinado para o encontro.
–
Sim Sr. Dessilva, até agora concordo que tudo isso poderia ter acontecido mas
ainda não compreendo como morreram e as ovelhas desapareceram. Mas,
desculpe-me, agora notei que está sem o sotaque americano!
–
É que eu aprendo línguas depressa. Morreram ou morreu? Mas afinal acreditas que
o Abel escapou ou não?
–
Acredito, acredito!
–
Voltemos então à história. Então, o Abel caminhou monte acima e quando chegou
ao outro lado da cumieira, ao ponto de encontro, já era noite fechada. Teve
sorte em ser Verão senão não teria conseguido passar o monte e aguentar a noite
lá no cimo, teria morrido congelado. Foi uma noite terrível porque não podiam
fazer uma fogueira com medo de que os atacantes ainda estivessem no monte. Os
lobos rondavam e atacavam as ovelhas pelo que, tiveram que lutar, juntamente
com os cães, toda a noite contra as feras. Quando o dia nasceu estavam exaustos
pelo que dormitaram um pouco cobertos com a manta que os pastores transportam
sempre enrolada às costas.
–
Sr. Dessilva sabe muito sobre os pastores, até sabe que eles levam uma manta às
costas. Mas diga-me então como é que o Alberto morreu e o Abel, os cães e as
ovelhas desapareceram? Será que os atacantes os viram? Mas como já sabe os
atacantes foram vistos a voltar ao Vale logo depois do ataque pelo que, no dia
seguinte, já não havia ninguém no monte. Por isso, a sua história não tem pés
nem cabeça.
–
Ouve então o resto. Realmente, nessa altura já não havia atacantes no monte e
as pessoas da aldeia já andavam à procura dos pastores e das ovelhas
desaparecidos. Mas, durante a noite, passou um pensamento negro pela cabeça do
Abel, quando acordaram, já o Sol ia alto, o Abel disse “Alberto, nós estamos
aqui no monte com mais de 300 ovelhas e, se calhar, os meliantes atacaram a
aldeia e mataram toda a gente. A única coisa que podemos fazer para que o nosso
povo não fique definitivamente perdido é levarmos as ovelhas mais para Norte,
vendêrmo-las no mercado da cidade e, daí, seguir com a nossa vida em frente,
partirmos para junto do Jonas. Daqui à cidade são uns 60 km, mesmo não podendo
fazer o trajecto num dia, para mos na aldeia que existe uns quilómetros aqui à
frente, depois, arranjamos alguém que nos a levar as ovelhas até à cidade.”
– O
Alberto imediatamente de forma negativa “Não Abel, não podemos fazer isso,
temos que voltar à nossa aldeia já pois, mesmo que os nossos tenham sido
atacados, nunca terão matado todas as pessoas, haverá sempre feridos que
precisam da nossa ajuda. Depois, assim que o Arquiduque souber que fomos
atacados na magnitude que estás a imaginar, manda logo as suas tropas em nossa
ajuda.”
Esta
esperança de que haveria sobreviventes na aldeia não foi capaz de demover o
Abel da sua ideia que continuou a insistir “Alberto, deixa-te disso, vamos para
a frente com isto, levamos as ovelhas para Norte e vendêmo-las. Depois, eu sei
que o Jonas está na Holanda, eu sei a morada dele, pegamos no dinheiro,
apanhamos o comboio e vamos ter com ele e, depois, apanhamos todos o barco para
a América. O Jonas disse-me numa carta que a América é a terra das
oportunidades, que estão a receber as pessoas e que lá é a nova terra
prometida, vamos para Nova York, vamos para a frente com isto, anda daí que
ficas com metade do dinheiro que conseguirmos com as ovelhas.”
–
E, Sr. Dessilva, e depois, o que aconteceu nessa sua história?
–
O Abel continuou a insistir, insistir e o Alberto sempre a dizer que não a
ponto de dizer “Antes morto do que vendido”. Nisto o Abel aproximou-se dele e
disse “Alberto não me faças isso, vamos neste projecto” a que o Alberto tornou a
responder “Antes morto do que vendido, tu não prestas.” Neste momento, o Abel
agarrou-lhe o casaco pela lapela com a mão esquerda, depois, tirou o facalhão
que transportava preso ao cinto na parte das costas e, com um movimento rápido,
cravou-o directo ao coração do amigo.
–
Não Sr. Dessilva, isso não pode ter acontecido assim, essa sua história é
terrível de mais, recuso-me a continuar a ouvir essa hipótese. O Abel era
sério, era incapaz de matar o seu melhor amigo, não, isso nunca poderia ter
acontecido, nem que fosse um canalha, um desalmado, nunca ninguém mataria um
amigo assim.
–
Júlia, nunca digas nunca. Diz-me a Júlia, quando encontraste o Alberto, como é
que ele tinha sido morto?
–
Com uma facada no coração mas o Sr. Dessilva sabe-o porque eu já lho talvez
tenha dito.
–
Se não achas a minha história verosível, vou então continuar para veres que a
verdade pode ser muito dura. O Alberto ainda ficou de pé por uns segundos e
disse “O que me fizeste Abel? Parece que me deste uma facada, parece que me
mataste.” Nisto o Abel disse “Perdoa-me Alberto, perdoa-me este crime que
acabei de cometer mas é para bem do nosso povo, eu hei-de recompensar o nosso povo
pela atrocidade que acabei de cometer.”
– “Nunca,
este crime nunca terá perdão, não há nada no Mundo que possas fazer para que eu
ou alguém te possa perdoar o que acabaste de fazer, este foi um acto de puro egoísmo
em que puseste a tua felicidade à frente da minha e de qualquer outra pessoa do
nosso povo.” Respondeu o Alberto. Nisto o Alberto caiu, ainda disse “Nunca” mas
revirou os olhos e morreu logo a seguir. Então, o Abel pegou nos seus 4 cães e
deu início à marcha para Norte. Ainda tentou chamar os cães do Alberto mas eles
ficaram junto ao corpo já morto. Não foi fácil levar as 300 ovelhas nos 20km
que ainda faltavam para a aldeia, foram feitos devagar porque as ovelhas
queriam-se tresmalhar, com os cães sempre a trabalhar, a correr de um lado para
o outro. Mas o Abel lá conseguiu chegar com as ovelhas à aldeia antes da noite
cair, onde tinha previsto passar a noite. Ficou num curral do estalajadeiro e
no dia seguinte contratou uns pastores dessa aldeia que o ajudaram a levar as
ovelhas até à cidade. Uma vez lá, vendeu-as por bom dinheiro, por um pouco mais
de 25000€.
–
Isso não pode ter acontecido. Além do mais, não bate certo, ainda tem que
explicar o que aconteceu aos cães do Abel. Onde ficaram os cães? Será que ele
também os matou?
–
Sim, sim, os cães tiveram o mesmo destino que o Alberto, foram sacrificados
para que não houvesse o risco de voltarem à aldeia do Monte.
–
Essa dos cães já me parece um remendo que o Sr. Dessilva precisou fazer.
–
Não, não, foi mesmo assim que aconteceu. Depois, o Abel pegou no dinheiro e
apanhou o comboio para Amesterdão onde se juntou com o Jonas. Nessa altura, o
Jonas já era um ourives encartado mas, por ter nascido nesta terra de parolos,
não lhe davam a oportunidade de mostrar o seu grande valor. Então, aceitou o
desafio do Abel e foram os dois para a América, para Nova York onde, com o
dinheiro das ovelhas, abriram a ourivesaria que hoje é um grande sucesso.
–
Eu não me acredito em nada disso. Além do mais, sendo o Sr. Dessilva sócio do
Jonas, se o Abel estivesse vivo e tivesse ido para a América com o Jonas, o
senhor deveria conhecê-lo. O Abel também deveria ser sócio do Jonas e, tanto
quanto disse até agora, esse sócio não existe. Ou terá o Jonas outro sócio de
que o Sr. Dessilva nunca tenha falado?
–
Não, não, Júlia, o Jonas não tem mais sócio nenhum, desde o primeiro momento
que a ourivesaria tem apenas dois sócios, eu e o Jonas.
–
Então, a sua história não tem qualquer aderência à realidade. Eu posso nunca
ter acreditado que o Abel tenha morrido mas a verdade não é essa. Aconteceu
alguma coisa, talvez algumas pessoas do Vale tenham levado as ovelhas para
Norte e tenha vendido o Abel aos turcos como escravo, mas não é possível que
ele tenha roubado as ovelhas e, ainda muito menos, que tenha matado o Alberto.
Não me acredito em nada disso. Acredito com toda a convicção que, um dia, o
Abel se vai soltar do cativeiro dos turcos e vai voltar à nossa aldeia.
–
A Júlia vai já acreditar que tudo o que eu lhe contei foi a verdade, a mais
pura das verdades. Agora que chegamos aqui à beira do riacho, olhe este cepo de
um carvalho velho que já foi cortado faz talvez 20 anos, repare neste cepo.
–
E o que tem este cepo?
–
Imagine que o carvalho está aqui, há uns cinquenta anos atrás, imagine uma tarde
de muito calor e este ribeiro com um fio de água a correr. Imagine que o Abel
está descalço, sentado nesta pedra grande, com os pés mergulhados na água
fresca e que a Júlia está encostada ao tronco forte do carvalho. Faça de conta
que está encostada a esse carvalho que eu estou a refrescar os meus pés neste mesmo
sítio.
–
Pronto, Sr. Dessilva, já me estou a imaginar encostada ao carvalho que aqui
havia. Vamos lá ver no que isto vai dar. Avance, avance que eu estou com
curiosidade.
–
Agora imagine-se nessa altura, com 11 ou 12 anos. O Abel roda sobre esta mesma
pedra como eu estou a fazer agora, olha para a Júlia, levanta-se e dá-lhe um
beijo, o primeiro beijo desse amor que os ligou até hoje. Depois, a Júlia
empurrou o Abel e ele caiu aqui, como eu estou a cair. A Júlia desatou a correr
por este caminho e o Abel ficou aqui deitado a olhar. Ali abaixo, a Júlia parou
e olhou para trás e sorriu. Lembra-se disto, isto aconteceu ou não?
–
Mas como o Sr. Dessilva sabe disto, quem lhe contou que isto aconteceu? Só eu e
o Abel sabíamos que isso tinha acontecido. Será que alguém estava a ver e,
agora, lho contou? Diga, diga, onde soube esta história, deixe de brincar
comigo e diga logo onde soube esta história.
–
Júlia, calma, calma, eu vou-lhe dizer como o soube mas a Júlia tem que me jurar
segredo sepulcral. Jamais pode dizer o que eu lhe vou revelar, nem em
confissão, nunca e a ninguém, vai ter que ir para a sepultura com a Júlia.
Promete guardar segredo total sobre o que eu lhe vou dizer?
–
Guardo, sim, guardo segredo. Toda a minha vida é um segredo pelo que prometo
guardar mais esse segredo sepulcral que vem por ai.
–
Então olhe para mim, olhe bem, imagine como eu seria há uns 40 anos atrás no
dia em que o Abel morreu no monte, olhe bem – fez-se silêncio durante um
minuto, dois minutos, três minutos .
–
Não, não pode ser, é impossível, meu Deus, diga-me que não é verdade o que eu
estou a imaginar, diga-me que eu estou apenas a ter um pesadelo.
–
Sim, sim, pode ser e é verdade, o Abel libertou-se do cativeiro e voltou à
nossa aldeia, o Abel sou eu.
Os olhos da Júlia encheram-se imediatamente de lágrimas. Ainda disse “Não pode ser, o Sr. Dessilva ser o Abel, não pode ser um ladrão, um assassino que matou o seu maior amigo” para logo perder os sentidos. O Sr. Dessilva deitou, com carinho, a Júlia de lado e, vendo que respirava normalmente e que estava quase a vir de volta a si, afastou-se.
Próximo capítulo (31 - A partida)
Os olhos da Júlia encheram-se imediatamente de lágrimas. Ainda disse “Não pode ser, o Sr. Dessilva ser o Abel, não pode ser um ladrão, um assassino que matou o seu maior amigo” para logo perder os sentidos. O Sr. Dessilva deitou, com carinho, a Júlia de lado e, vendo que respirava normalmente e que estava quase a vir de volta a si, afastou-se.
Próximo capítulo (31 - A partida)
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