Crime e Redenção
Pedro Cosme Vieira
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Ver o capítulo anterior (31 - A partida)
32 - A cumieira.
Recomeçara
a subida íngreme, bem mais de 10%, pouco depois das 12h30.
O filho da Maria
José, o Rúben, porque a viagem se tornou dura de mais para uma criança que
ainda não tinha 12 anos, ia em cima de um burro. Já o Sr. Dessilva estava-se a
aguentar bem para a sua idade, de vez em quando fazia 10 minutos em cima do
burro “para não atrasar a marcha” mas, logo depois, caminhava mais outros 10 ou 20
minutos “para não cansar o animal”. De facto, o burro poderia levá-lo mais
tempo mas o Dessilva procurava recriar, tanto quanto as suas forças o
permitissem, a viagem que tinha feito há mais de 40 anos atrás.
–
Realmente, Sr. Dessilva, isto agora custa muito, com as mulheres a começar a
ficar para trás. E, realmente, estou a ver pessoas muito mais novas e fortes do
que eu a ficar para trás, o que será que lhes está a acontecer? – Perguntou o
António que não largava o Dessilva.
–
É a doença das alturas a começar a entrar. Vais ver que daqui a pouco vamos ter que meter algumas
dessas pessoas em cima dos burros. Isto ataca fortes, fracos, novos e velhos, mulheres e
crianças, é um calhar, algumas pessoas resistem melhor e outras pior. Começa-se
a cumular liquido nos pulmões e as pessoas deixam de poder
respirar, afogam no meio da montanha. E o liquido também se pode acumular no cérebro o que faz
com que a pessoa vire da cabeça, temos que estar atentos aos que vão ficando
para trás pois podem cair acabando por morrer congeladas.
A
marcha foi-se tornando cada vez mais lenta e, quando se ouviram, muito ao de
longe, o sino da igreja da aldeia do Monte dar as 16h da tarde, ainda faltava muito
mais do que um km para o cume “António, António, onde estás? Quem é que tinha
razão? Então demorava pouco mais de uma hora? Onde é que vai essa hora?” O António
gritou lá do fundo da fila “Estou aqui, estou aqui a ajudar este jovem, o Sr.
Dessilva tinha toda a razão, além de estar a demorar muito mais tempo também a doença da altura está a atacar
pessoas que eu nunca pensei.”
O sr. Dessilva, olhando para trás, disse “Vamos parar
um pouco para beber um chá quente e para comer qualquer coisa que já há pessoas a
fraquejar, vamos-nos juntar todos aqui. Senhores, tragam broa, mel com fartura
e água, é preciso beber muito pois este ar seco e frio, ao mesmo tempo que nos afoga os pulmões, seca-nos a carne.” Nesta altura o frio era tanto e o vento de tal
forma cortante que as pessoas, mesmo com as mantas embrulhadas pelas costas
começavam a sentir frio. “Se o Sr. Dessilva não nos tivesse obrigasse a trazer as
mantas, morreríamos agora de frio” era a opinião geral.
Por
causa do frio, todos se encostavam a todos como se fossem pintainhos sem
galinha, todos menos o Sr. Dessilva cujo casaco de peles de urso e as botas de
pele de rena pareciam dar-lhe uma protecção total contra o frio e o vento.
Agora, o Sr. Dessilva ainda tinha um barrete “de pele de castor do Canadá” que
lhe cobria, além da cabeça, toda a cara, escapando apenas os olhos que também
estavam tapados por uns óculos escuros redondos “esta roupa dava para fazer a
viagem ao Polo Norte” disse o Dessilva. “Eu até podia ficar a dormir aqui
uma semana que o frio não me chegava mas vocês, se não bebermos já um chá
quente, vão morrer congelados”.
O
Sr. Dessilva chamou novamente os burros que carregavam lenha e fez uma fogueira
sobre a qual colocou a chaleiras enorme que tinha mandado fazer por encomenda.
Encheu a chaleira de neve que derreteu, “Bebam, bebam enquanto está quente que,
senão, morrem de frio”. Voltou e voltou a por a chaleira ao lume e a fazer mais
chá quente com mel até que já todos estavam satisfeitos e quentes. As pessoas
também comeram mais do mesmo, broa de milho, rodelas de chouriço e queijo.
“Nunca pensei de, em pouco tempo, ter ficado assim sem energia e tão cheio de
sede” diziam as pessoas umas para as outras. “Quem está na aldeia nunca imagina
que aqui em cima o tempo é tão agreste” diziam outras pessoas. Aquele chá
quente com mel tinha feito milagres nas pessoas que se tornaram novamente
energéticas.
Custou
atravessar aquele quilómetro final mas lá conseguiram chegar ao cume já um pouco depois das
16h00. O vento era impossível de tolerar, tão forte que zuia, zzzzzzzz, zzzzzz,
e arrancava a neve do chão. Por causa da doença das alturas, 5 ou 6 pessoas iam
em cima dos burros. Um dos jovens, que ainda há pouco parecia cheio de força e
capaz de atravessar todo o mundo de uma só vez, estava mais morto que vivo.
“Vês António, o que te dizia? A doença das alturas é capaz de mandar abaixo o
que parece forte e fazer revigorar o que parece fraco. Repara como eu vou aqui quase
como se nada fosse”. E realmente era impressionante como alguém com 62 anos de
idade conseguia resistir enquanto que o Joaquim, um jovem na força da idade, já
nem conseguia falar. “Se agora parássemos aqui uma ou duas horas, este já não
se safava, afogava, os pulmões estão-se a encher rapidamente de água.”
– O
Sr. Dessilva não está a conhecer o Joaquim? Este é o sobrinho do seu sócio, do Sr.
Jonas, o filho da Isabel do Zenão!
–
Ai é este? Nem o estava a reconhecer. Realmente, lá em baixo, parecia um jovem
cheio de força mas aqui em cima foi-se completamente abaixo, está um farrapo. Isto que está a acontecer aqui no cimo do monte com o corpo também acontece na vida com a vontade. Na vida há pessoas que parecem muito fortes mas que, quando apanham de frente com as dificuldades, vão-se abaixo. Vamos, vamos, não podemos parar agora, senão o Joaquim morre-nos aqui. A boa notícia é que depois
de passarmos o cume vai custar muito menos porque, a descer, todos os santos
ajudam, e a doença reverte.”
Passando
o cume, umas centenas de metro à frente o Sr. Dessilva retirou-se do caminho uns
10 metros, olhou para a esquerda e para a direita e ajoelhou-se num local
qualquer, igual a qualquer outro, mas que parecia especial para o Sr. Dessilva.
“Senhor perdoa-me este crime que eu cometi há mais de 40 anos atrás. Se hoje
estou cá é para pedir perdão por todo o mal que fiz e tentar redimir-me desse
crime hediondo que cometi com pensamentos egoístas. Ilumina o meu pensamento
para que, na medida do possível, me consiga redimir.”
–
Então Sr. Dessilva, encontrou algum lugar especial? – Apareceu o António sem
que o Dessilva desse conta que, mais uma vez, assustou o Dessilva porque, por momentos, pensou ser o Alberto.
– Ai
és tu António? Sabes António, vou-te dizer algo que te vai surpreender, é que
foi exactamente aqui que o teu pai morreu. Caiu aqui atingido por uma facada,
encostado a esta pedra grande, uma facada directa ao coração quando tentava
evitar que roubassem as ovelhas. Tens que
te orgulhar do pai que tiveste e que não chegaste a conhecer.
–
Mas o Sr. Dessilva tem a certeza de que ele morreu aqui mesmo?
–
Sim, tenho a certeza absoluta.
–
Mas como pode ter assim tanta certeza?
–
Sabes, vou-te confessar, é que fui testemunha ocular desse crime!
–
Testemunha como? Testemunha ocular, quer dizer que estava aqui quando o meu pai morreu?
–
Sim estava aqui!
–
Então, só poderia ser um dos ladrões do gado! Seria por acaso um dos assassinos? Eu acreditaria mais facilmente que Deus não existe do que o Sr. Dessilva foi um dos ladroes que causaram a morte do meu pai!
O Dessilva, num repente, tomou consciência no que tinha dito. Se confessasse talvez se libertasse dos remorsos que o consumiam havia anos mas a viagem entraria em colapso. Não, a viagem tinha prioridade, isso tinha que ficar para depois, para quando todos estivessem salvos, a redenção só pode acontecer por actos e não pelo arrependimento. Talvez tivesse sido atacado pela doença das alturas!
– Não,
não, nada disso, não era isso que eu queria dizer, eu fui testemunha ocular
mas não nesse sentido. Eu fui testemunha ocular pelos olhos da Júlia, soube-o pela Júlia que
foi a pessoa que descobriu o corpo do teu pai. Foi ela que veio com os cães até
aqui e que descobriu o teu pai, e esteve-me a relatar exactamente onde era o
local e o que, na ideia dela, tinha acontecido. Fui testemunha ocular na
interpretação dos factos que foi feita pela Júlia.
–
Ah, testemunha baseada numa recriação de uma mulher que é bruxa e em quem
ninguém acredita! Se foi essa a fonte, tanto pode ter sido aqui como noutro sítio qualquer, o Sr.
Dessilva não acredite nisso que essa mulher lhe disse!
–
Mas porque dizes uma coisa dessas da Júlia?
–
Agora que estamos aqui no cimo do monte e que vejo que o Sr. Dessilva é
verdadeiramente uma pessoa boa, vou-lhe contar um segredo que não pode ser
contado a ninguém. Eu tive 16 filhos dos quais morreram 6 , morreram 2 de tifo e
os outros ... nem sei se lho possa dizer.
–
Diz, diz, que já estou cheio de curiosidade.
–
Foi ela que os matou, matou-me esses 4 filhos sem dó nem piedade.
–
Matou 4 crianças assim sem mais nem menos?
–
Bem, as crianças nasceram, disse ela, doentes e ela fez um defumadouro qualquer da Terra
Santa para que elas se curassem mas, afinal, matou-as. Chegava lá a casa,
olhava para a criança e, se desconfiasse que tinham nascido com a doença, dizia
que as ia curar e, no fim, matava-a. Essa mulher não tem coração!
Como
o Dessilva tinha sido criado na aldeia até aos 20 anos sabia da doença mas, porque teve
filhos, não tinha consciência de que alguém matava as crianças que
nasciam doentes. E menos lhe passou pela cabeça de que essa pessoa fosse a
Júlia que ele tanto amou.
– Deixemos
agora isso para trás que temos que acreditar que o que ela fez foi com boa intenção, para o teu
bem e das tuas outras crianças, tens que te concentrar é nas 10 crianças que
tens vivas e saudáveis. Deixemos o passado no passado. Vamos lá, toca a levantar que temos que chegar à aldeia
antes de ser noite e ainda faltam 10 km, vamos lá que já falta pouco, mais duas
ou três horas e estamos lá, vamos ver se chegamos antes das 19h para fugirmos
do frio da noite. – Assim que chegou às pessoas que estavam deitadas na neve,
riu-se – Onde estão os jovens cheios de força que vi hoje de manhã? – e continuou-se
rir com grandes gargalhadas – estou a ver que se eu não tivesse preparado a
viagem e se não tivesse vindo, metade das pessoas já estaria morta no meio do
monte. A juventude de agora não presta para nada!
Capítulo Seguinte (33 - A estalagem)
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