Crime e Redenção
Pedro Cosme Vieira
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Ver o capítulo anterior (33 - A estalagem)
34 – O comboio
Da
aldeia até à cidade ainda eram 40 quilómetros mas que, havendo uma estrada de
terra batida, que, apesar de por vezes subir, não era nada comparável ao que
tinham vivido na travessia da montanha. Também, por ser ao longo do vale, a
neve era muito menos, não mais de 10 cm. Assim, apesar de estarem com os corpos
cansados da travessia da montanha feita na véspera, mesmo parando várias vezes
para beber chá quente, para comer qualquer coisa e para dar de beber e comer aos
animais, pouco depois das 18h chegaram às portas da cidade, onde pararam para comer
pois, a partir dai, os burros voltariam à aldeia e haveria menos oportunidades
para recarregar as energias.
O
comboio seria, se viesse à tabela, às 22h mas convinha chegar com tempo porque ainda
não tinham bilhetes, o que, depois do que viveu na estalagem, preocupava o
Dessilva. Comeu às pressas e disse para o António “Vou à estação comprar os
bilhetes. Anda comigo e vocês fiquem aqui e só avancem quando o António vos
vier chamar.” .
O
camaninho para a estação ainda demorava 20 minutos a bom caminhar, tempo durante
o qual o Dessilva foi planeando uma estratégia. A ideia seria o Sr. Dessilva ir
sozinho comprar os bilhetes e, depois, avisar o António para que fosse chamar
as outras pessoas.
Chegando
à estação, o Dessilva dirigiu-se à bilheteira “Boa tarde, precisava comprar
bilhetes em terceira classe para a Estação Central de Amesterdão para o comboio
das 20h00. Quanto é que custa cada bilhete?”
– Boa
noite meu senhor, estou a ver que o sr. não é daqui pois, porque já faz noite,
é boa noite.
–
Boa noite, realmente o Sr. tem razão, eu não sou daqui, sou americano e lá, boa
noite é depois das 20h.
–
Pois eu vi logo. Mas diga então o que o trás cá.
–
Precisava de bilhetes de comboio, em terceira, adultos e crianças, quanto é o
preço?
– Deixe
ver aqui no preçário, bilhete para Amesterdão, Estação Central, vendo aqui, deixe
ver, custa, custa, aqui está, um adulto 103,40€ e uma criança até aos 12 anos
custa 51,70€. Quantos bilhetes pretende o senhor?
–
Pretendo 32 bilhetes de adulto e um bilhete de criança, tudo em terceira
classe, e aviso que também temos alguns embrulhos.
–
Não tem problema nenhum pois na carruagem de 3.a classe tem sempre espaço
suficiente para as pessoas e para as malas e, se vier cheio, mando meter mais
uma carruagem. 32 bilhetes de adulto e um de criança, deixe-me fazer a conta, 32
vezes 103,40 mais 51,70, são 3360,50€. Mas isto é alguma excursão?
–
Sim, sim, é uma excursão a Amesterdão – Tirando uns maços de notas de um bolso
– Tem aqui o seu dinheiro, três de 1000
dá 3000 mais 20, 40, 60, .... 340, 360 euros e ainda uma moeda de 50 cêntimos
para fazer a conta certa.
–
Tome então os 33 bilhetes. Desejo-lhes muito boa viagem para si e para os seus
companheiros.
O
Sr. Dessilva meteu os bilhetes ao bolso, saiu da estação e, no sítio combinado,
lá estava o António “ António, já tenho os bilhetes, vai chamar as pessoas”
–
E quanto é que custaram?
–
Isso agora não interessa, precisamos é meter as pessoas no comboio.
O
António foi o mais rapidamente que conseguiu “Vamos, vamos, podemos avançar
para a estação, o Sr. Dessilva já tem os bilhetes”.
Assim
que aquelas pessoas se tornaram visíveis, a cidade criou-se um certo reboliço.
Alguém entrou na estação a gritar “Chefe, chefe, vem aí uma multidão de fulanos
do monte com cães e burros e parece que pretendem apanhar o comboio.” Ouvido o
aviso, o chefe dirigiu-se rapidamente à porta central para fechar a estação mas
as pessoas já lá estavam “O que é que pretendem daqui?”
O
António que ia à frente tomou a palavra “Queremos embarcar no comboio que vai
para Amesterdão.”
–
Isso não vai ser possível, não vale a pena entrar na estação porque a bilheteira
está fechado porque já não há bilhetes, o comboio que vem aí vai cheio. Se não
têm bilhete, não podem entrar, vão-se embora e venham cá na próxima semana a
ver se há bilhetes.”
– Mas
Sr. Chefe, então deixe-nos entrar porque nós temos bilhete para embarcar no
comboio que vem aí, para o comboio das 20h00, já compramos e pagamos os
bilhetes na 3.a classe e o Sr. Chefe prometeu que havia lugar e que, mesmo vindo
o comboio lotado, que seria acrescentada uma carruagem – atacou o António num
tom amigável mas firme.
–
Mostre-me então esses bilhetes, mostre-mos pois eu sei bem que não lhe vendi
nenhum bilhete, ainda não estou assim esquecido. Se não lhe vendi nenhum
bilhete, como pode estar a dizer que os tem? Mostre-me então esses bilhetes? –
O António apontou para o Sr. Dessilva.
–
Aquele senhor é o nosso terratenente, estamos aqui por conta dele pois vamos
trabalhar para as suas terras, ele vem aí, vai já ver que tem os bilhetes para
que nós possamos embarcar no comboio que vai para Amesterdão.
–
Não pode ser, o Sr. aí, venha aqui se faz favor que este homem está a levantar
uma calúnia sobre o senhor. Diz ele que o senhor comprou bilhetes para estales
todos, se calhar, até para os burros! Diga-lhe que isso é mentira, que comprou
bilhetes mas para montanhistas que hão-de chegar a qualquer momento.
–
Não, não, Sr. Chefe, para os burros não mas, realmente, eu ainda há pouco
estive na bilheteira a comprar 33 bilhetes, lembram-se? Estão aqui na minha mão
e são para mim e para essas pessoas, são pessoas que vão trabalhar nas minhas
terras – disse o Dessilva em voz muito baixa quase ao ouvido do Chefe.
–
Isto não pode ser, o senhor enganou-me, estas pessoas não podem embarcar junto
com os outros passageiros, não pode ser, eu vou ser despedido, venha alí que eu
devolvo-lhe o dinheiro.
Enquanto
caminhavam, o Sr. Dessilva disse “Não, não, não pense nisso, estas pessoas
vão ter que embarcar juntamente comigo pois preciso delas nos meus campos”. No
entretanto, o Sr. Dessilva pegou numa nota de 10€ e juntou-lhe mais uma nota de
20€, depois outra e entregou as 3 notas ao chefe da estação que, olhando para
um lado e para o outro, as meteu discretamente no bolso.
– Ai
que a minha vida vai começar a andar para trás – e ficou a pensar em voz alta
com a mão na cabeça – mas não podem entrar neste comboio de maneira nenhuma, se
alguém o sabe, serei logo despedido. Bem, o melhor que posso fazer é metê-los
numa carruagem de carga, não tenho outra hipótese, vou mandar pôr palha para
que se possam deitar durante a viagem Entrem naquela carruagem de carga ali ao
fundo o mais discretamente possível, vão por este caminho com os burros e
entrem pela porta que tem lá ao fundo directamente para linha de forma que
ninguém os veja e os burros, nem pensem em metê-los na carruagem. O sr concorda
com isso? O Sr., dou-lhe um lugar na primeira classe.
–
Se não consegue fazer melhor, aceito a carruagem de carga.
–
Então, o Sr. fique aqui para confirmar que, quando o comboio chegar, eu mando
atrelar a carruagem. Tenho ali uma boa carruagem, que tem aquecimento a lenha que
vai dar para o aquecimento e para poderem fazer chá ou café para beber durante
a viagem que ainda vai ser longa. Vamos ver se escapo desta confusão. E que
faço aos burros?
– Com
os burros não tem que se preocupar que são para ficar, só preciso que me indique um sítio onde se possam abrigar
para passar a noite?
–
Podem ficar no coberto que tem do lado de fora da estação, lá ao fundo. Mas que
partam antes do Sol nascer para que ninguém os veja pois não quero ter problemas.
Aquela
pequena multidão e os burros perderam-se logo na escuridão. Foram até a
referida carruagem onde os embrulhos que os burros levavam foram sendo carregados.
Os embrulhos eram pequenos, tinham algumas peças de roupa e alguma coisa para
se comer na parte da viagem que faltava. Alguns homens foram ao armazém
indicado pelos ferroviários buscar uns fardos de palha para dar de comer aos
burros e para poderem passar a noite de forma mais confortável. “À cautela, encham
também este pipo de água e levem-no pois a porta vai ficar fechada por fora até
à fronteira e pode acontecer que o comboio precise parar pelo caminho por causa
do nevão.” disse o chefe que, estranhamente, se tinha muito empenhado em viagem
se tornar num sucesso.
No
entretanto, o Sr. Dessilva tirou do bolso um papel e uma caneta e encostou-se a
escrever uma carta. Depois, meteu-a num envelope e entregou-a um dos pastores
que o acompanharam no monte. “Vais levar esta carta para o Sr. Costa. A viagem,
como viram, está-se a complicar pelo prevendo que, quando chegarmos à
fronteira, as coisas ainda vão piorar muito. Por isso, vou ter que seguir
viagem até Amesterdão. Hoje, vão ter que pernoitar no coberto que existe ao
fundo da estação, já falei com o chefe da estação e podem ficar aí, não é nada
de especial mas sempre dá para abrigar da neve. Comam que ficam aí com alguma
coisa. Amanhã partam cedo e, à noite, vão pernoitar na mesma estalagem onde
passamos ontem a noite, já está tudo pago, o estalajadeiro ainda vos vai servir
uma sopa quente, dar palha para os animais e alguns mantimentos para que possam
voltar a casa. Agradeço-vos e desejo-vos boa viagem.
–
Igualmente Sr. Dessilva, que para chegar a Amesterdão vai precisar mais da
sorte do que nós – disseram os carregadores e os pastores.
O
embarque correu bem. O Comboio chegou, atrelaram a carruagem de carga onde
estavam as pessoas e, no fim, o Sr. Dessilva também entrou na carruagem, para ficar
junto dos seus. Como combinado, veio o chefe da estação que entregou um papel
al Sr. Dessilva.
–
O Sr. faça favor de levar este recibo do frete da carruagem.
Sr.
Dessilva olhou e dizia “Carruagem de carga para Amesterdão, 547,50€”
–
Então, tenho que pagar esta quantia?
–
O Sr. deixe ficar pois já pagou os bilhetes que não vai usar. A viagem vai
correr bem, já enviei um telex para que a carruagem possa seguir até à fronteira
sem ser mais verificada.
A
carruagem foi fechada e selada por fora para que ninguém sentisse curiosidade
de a abrir.
Afinal,
pensou o Sr. Dessilva, o chefe tornou-se bastante colaborativo o que é estranho
pois só lhe dei 50€. Mas a razão não foi esse. É que, uma vez o comboio
partindo sem os 33 passageiros, o chefe iria anular os bilhetes e, descontando os
547,50€ da carruagem, meter ao bolso os 2813€ da diferença.
Capítulo seguinte (35 - A volta)
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