Crime e Redenção
Pedro Cosme Vieira
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Ver o capítulo anterior (32 - A cumieira)
33 – A estalagem
Quando
chegaram às proximidades da aldeia do Norte, já estava escuro, o Sol já se
tinha posto fazia bem mais de uma hora, o ar estava frio e cortante e tinha
começado a nevar um pouquinho. Pensando que as 30 pessoas iriam assustar o
estalajadeiro, o Dessilva gizou uma estratégia que passava por negociar as
condições do alojamento em degraus, primeiro um estábulo e só depois, se possível,
uns quartos. Também era fundamental que o estalajadeiro já tivesse recebido a
encomenda postal enviada pelo Jacob a partir de Amesterdão com os
salvo-condutos necessários para que as pessoas pudessem fazer a viagem.
O
Dessilva seguiu para a aldeia sozinho. Passando pelas casas olhou para um lado e
para o outro e foi pensando para si “A aldeia tem algumas casas novas mas,
tirando isso, está tal e qual como há 40 anos atrás”. Foi andando e descobriu a
mesma estalagem onde tinha estado havia tantos anos. Entrou e, naturalmente,
não reconheceu ninguém, naquela noite o senhor que hoje estava ao balcão ainda
não deveria ser nascido.
–
Boa noite Sr. Estalajadeiro, chamo-me Newman Dessilva e penso que recebeu uma
encomenda postal que me é dirigida!
–
Boa noite, então o senhor é que é o Newman da Dessilva, tenho, tenho, recebi um pacote que lhe é dirigido,
tenho-o mesmo aqui debaixo do balcão, faça favor mas dê-me também para cá 5€
pelo trabalho que tive e pelo depósito.
–
Com certeza – O Dessilva tirou da carteira uma nota de 20€ e entregou-a ao
estalajadeiro –Já está na sua mão mas não precisa dar-me já o troco que ainda
vamos fazer negócio.
–
Negócio como?
–
É que eu preciso de um local para pernoitar.
– Se precisa de um local bom e barato para
pernoitar, veio mesmo ao sítio certo. Temos o quarto perfeito, uma coisa feita mesmo
à medida da sua fineza pois vejo, pela roupa, que é montanhista. Arranjo
bom e barato, por 25 €, com boa cama, boas áreas e casa de banho com água
quente e ainda tem direito a jantar, não falta aqui variedade e, amanhã,
pequeno almoço com tudo do que há de melhor aqui na aldeia, pão fresquinho,
chá, leite, queijos de ovelha, cabra, vaca e de mistura, enchidos e doces de
todo o tipo. Vai ver que é barato, 25€ com os 5€, já só tem que me dar mais
10€.
–
Então, vai mesmo ser aqui que eu vou pernoitar, mas o negócio ainda não acabou.
O que eu também pretendo é um local para abrigar os animais que me acompanham e
que deixei à entrada da aldeia, 20 burros que carregam as minhas tralhas, 8 cães
que me defenderam dos lobos e, naturalmente, ainda as pessoas que os conduzem.
–
Sim, isso arranjasse, tenho um bom curral mesmo à porta da aldeia, faço-lhe 5€
por cabeça o que inclui lenha para aquecer água pois, com este frio, não é bom dar
água gelada aos animais, e ainda ração para eles encherem o bandulho. Se fosse
cliente conhecido, fazia-lhe uma atenção mas, não o conhecendo, leva com a
tabela, nem mais nem menos, 5€ por cabeça.
Aquele
preço era para regatear, o mais certo é que ficasse nos 2€ mas o Dessilva não o
iria fazer pois ainda tinha o problema de ter que arranjar um local para que as pessoas pudessem passar a noite.
–
Eu conheço esse seu curral pois já aqui estive faz mais de 40 anos mas o Sr.
não me pode conhecer pois é novo de mais e nenhuma memória reconheceria uma
cara 40 anos depois! Na altura meti lá 250 ovelhas!
–
Pois diz muito bem, eu nem 40 anos tenho, nesse tempo era o meu pai que Deus já
lá tem que era o estalajadeiro. Mas ter estado aqui há 40 anos ainda não o faz
cliente habitual.
–
Aceito então os 5€ por cabeça.
– Óptimo – disse o estalajadeiro com cara de
ter feito um grande negócio – 30€ a somar a 28 vezes 5€ dá, deixe-me fazer a conta
aqui na lousa, 170€, já me deu 20€, faltam 150€! – Já havia muito tempo que
uma noite não rendia tanto dinheiro e, muito menos, quase apenas pela renda do curral.
O Dessilva foi a um dos bolsos interiores do casaco, tirou um maço de notas e começou a passar notas de 20€ para cima o balcão que ia contando em voz alta “20, 40, 60, 80, 100, 120, 140, 160, cá estão 160€, com os 20€ que já lhe dei, soma 180€.”
– Tenho então que lhe dar 10€ de troco.
– O melhor ainda não pois ainda temos que continuar o negócio! é que também estou acompanhado por umas pessoas que levo para trabalhar nas minhas terras que ficam longe daqui, mais para Norte, é que por aquelas terras não existe gente que preste para para trabalhar pelo que, constando-me que havia gente forte por estes lados, vim buscar 31 jovens e uma criança. Naturalmente, também vou precisar de um local onde possam passar a noite e ainda uma sopa quente.
O Dessilva foi a um dos bolsos interiores do casaco, tirou um maço de notas e começou a passar notas de 20€ para cima o balcão que ia contando em voz alta “20, 40, 60, 80, 100, 120, 140, 160, cá estão 160€, com os 20€ que já lhe dei, soma 180€.”
– Tenho então que lhe dar 10€ de troco.
– O melhor ainda não pois ainda temos que continuar o negócio! é que também estou acompanhado por umas pessoas que levo para trabalhar nas minhas terras que ficam longe daqui, mais para Norte, é que por aquelas terras não existe gente que preste para para trabalhar pelo que, constando-me que havia gente forte por estes lados, vim buscar 31 jovens e uma criança. Naturalmente, também vou precisar de um local onde possam passar a noite e ainda uma sopa quente.
– Bem,
como o senhor chegou do Monte, primeiro, vou ter que ver quem são essas
pessoas, se forem quem eu penso, vai ser impossível fazer essa parte do negócio. Mas, primeiro, temos que tratar dos animais e, depois, vamos tratar das pessoas que o acompanham.
Porque
já estava noite, o estalajadeiro acendeu um lampeão e lá foram os dois homens a
apanhar neve que se estava a tornar cada vez mais espessa “Isto ainda se vai
transformar numa noite de tempestade” – disse o estalajadeiro para manter
conversa com o cliente – “É este o curral que lhe digo, como vê, isto é
bastante grande, como disse, até já o conhece por dentro sabendo que cabem aqui mais de 250
ovelhas”. Era mesmo aquele o curral onde, há mais de 40 anos, o Sr. Dessilva tinha
pernoitado na sua fuga da miséria. As lágrimas vieram-lhe imediatamente aos
olhos.
–
Passa-se alguma coisa senhor?
–
Não, não, não é nada, é o vento frio que me fere os olhos.
–
Pode então, pode dizer aos carregadores para meterem aqui os animais e que também
podem pernoitar junto deles. Agora, onde é que estão essas tais
pessoas que o acompanham para que as possa ver?
–
Estão às portas da aldeia, são uns 250 m daqui.
–
Vamos então até lá para ver o que posso fazer.
Quando
chegaram às pessoas o lampião pintou um quadro deprimente de que o Dessilva,
por já estar habituado, ainda não tinha dado conta. Era um magote de pessoas
todas vestidas de forma andrajosa, roupa preta cheia de remendos, suja da
viagem, com mantas também remendadas enroladas pelo corpo e a tapar a cabeça,
os homens com barbas compridas e, uns com um chapéu e outros com um gorro pretos,
encebados, e as mulheres com um lenço a tapar quase toda a cara, todos muito
magros, só mesmo pele e osso. As pessoas estavam encostadas aos burros a tentar
uma protecção contra a agrura do tempo. “Mau, isto está mau, não vai ser
possível resolver o seu problema, os burros, os cães e os carregadores meto-os no curral porque já fechamos negócio mas o
resto não, não posso mete-los na estalagem, os vizinhos matavam-me se soubesse
que eu os metia dentro de portas, incendiavam-me a estagem nunca mais teria
nenhum cliente” e, virando costas, voltou para a estalagem. O Sr. Desilva só
disse “Vamos conversar” e seguiu o estalajadeiro de volta à estalagem. Quando
reentraram o estalajadeiro foi claro “Não posso meter em minha casa animais fazendo
de conta de que são pessoas. São animais cheios de pulgas e de piolhos, devia-me
ter sido verdadeiro, ter-me dito que precisava de abrigo para animais, burros,
cães e de outra espécie.”
–
Deixe-se disso homem, que aqueles burros, cães e homens são seres que me servem e de
que preciso seja como carregadores ou arrendatários nas minhas terras, não
quero saber se têm pulgas, piolhos ou carraças, o que eu quero saber é que se
ficarem ao tempo, vão morrer e quem fica com o prejuizo sou eu. Por isso, se
ainda há bocado me disse que fazia 5€ por cabeça de cada animal e agora diz que
são todos animais, fazemos então esse preço, burros, cães e outros animais, tudo a 5 €
por cabeça. São 20 burros, 8 cães, 5 carregadores, 2 pastores, 31 trabalhadores
e uma criança, soma 67 cabeças, a 5€ dá 335€, mais os 30 €, são 365€ de que já lhe dei 160.
O estalajadeiro ficou calado por uns segundos e o Dessilva aproveitou este silêncio. Sem deixar o estalajadeiro pensar uma resposta, foi novamente a um dos
bolsos interiores do casaco, tirou outro maço de notas e começou novamente a passar notas de
20€ para cima o balcão que ia contando em voz alta “180, 200, 220, ...” por ali fora até fazer 380€, “Cá estão 380€, ainda tem que me dar 15€ de troco.”
Ao
ver os 220€ em cima do balcão que somavam aos 160€ dos animais, o estalajador estremeceu e, apesar da linguagem
corporal dizer que ia aceitar, no último segundo recuou.
–
O senhor sabe que eu não sou homem de voltar com a palavra atrás mas não vou
poder aceitar, dinheiro é dinheiro mas os meus vizinhos vão-me matar.
– Mas
espere aí porque ainda não acabei. É que os burros, cães e carregadores vão
voltar para trás, 35 cabeças fazem mais 175€, com os 15€ que tem que me dar de
troco, são mais 160€. E pago já o retorno – continuando com o maço de notas na
mão – 400, 420, 440, 480, faz 500€, agora não pode dizer que não. E se esta primeira viagem correr bem, se estas pessoas forem mesmo trabalhadores como ouvi dizer, mais viagens se seguirão e o ponto de apoio será sempre aqui.
Finalmente,
o estalajadeiro ficou cego com o dinheiro, “São 500€, é muito dinheiro, vai-me
safar o mês e, no futuro, mais 500€ poderão cair-me no bolso” pensou ele.
–
Bem, realmente, apanhou-me a palavra e eu não sou homem de voltar com a palavra
atrás. Faço-lhe então por 500€ e aguardo o retorno dos animais e dos varregadores – esticou a mão que foi rapidamente
apertada pelo Sr. Dessilva para selar o acordo.
O
Sr. Dessilva vendo que o negócio ainda não estava bem firme, passou ao ataque "Então agora, por favor, mande o seu moço abrir a porta do curral que está um tempo de cortar à faca".
– Vou lá eu mesmo pois o moço pode dar com a lígua nos dentes. Vou eu mesmo tratar da palha para os burros e para que as pessoas se possam deitar. Vou também arranjar lenha para que possam aquecerem água para os animais e para fazerem um chá pois devem estar cheios de frio e de sede. Sabe senhor, há bocado eu posso ter sido um bocado duro mas fui colhido um pouco de surpresa por aquele aspecto deplorável e vou-lhe mesmo confessar, quando aparecem pessoas dessas por aqui as pessoas escorraçam-nas como se fossem a peste. Mas agora estou a ver que o senhor é boa pessoa e, para ter atravessa o monte para as ir buscar, o que não é nada fácil, mostra que precisa mesmo destas pessoas lá nas suas terras. Se não fosse ver em si um homem sério e de bom coração, deixava que passassem a noite ao tempo, não queria saber. O Sr. deve ser mesmo bom coração para pagar 500€ para que essas pessoas não fiquem ao frio, outro qualquer não se importaria e, se morresse algum, paciência, muitos mais no Monte.
– Vou lá eu mesmo pois o moço pode dar com a lígua nos dentes. Vou eu mesmo tratar da palha para os burros e para que as pessoas se possam deitar. Vou também arranjar lenha para que possam aquecerem água para os animais e para fazerem um chá pois devem estar cheios de frio e de sede. Sabe senhor, há bocado eu posso ter sido um bocado duro mas fui colhido um pouco de surpresa por aquele aspecto deplorável e vou-lhe mesmo confessar, quando aparecem pessoas dessas por aqui as pessoas escorraçam-nas como se fossem a peste. Mas agora estou a ver que o senhor é boa pessoa e, para ter atravessa o monte para as ir buscar, o que não é nada fácil, mostra que precisa mesmo destas pessoas lá nas suas terras. Se não fosse ver em si um homem sério e de bom coração, deixava que passassem a noite ao tempo, não queria saber. O Sr. deve ser mesmo bom coração para pagar 500€ para que essas pessoas não fiquem ao frio, outro qualquer não se importaria e, se morresse algum, paciência, muitos mais no Monte.
–
É que eu penso que, no fundo, também são criaturas de Deus.
–
Tem toda a razão. Por isso, também lhes vou mandar uma panela de sopa de feijão
que a minha mulher tem ali feita e pôr outra ao lume para fazer mais pois as
pessoas pareceram-me com necessidade de comer algo quente.
Atendendo
a que lá fora a neve se tinha transformado numa tempestade, se não fosse o
abrigo, concerteza que morreriam pessoas. Com as barrigas cheias com a sopa
quente,
as pessoas ficaram como novas. “Se nós comessemos sempre assim, ficávamos
gordos como o porco no dia da matança” era o que mais se ouvia. As pessoas
encostaram-se umas às outras em cima da palha e, dado o cansaço, imediatamente adormeceram
profundamente como se estivessem num hotel de luxo. O Sr. Dessilva não
chegou a usar o quarto, decidiu passar a noite “Com os arrendatários” mas sentiu-se melhor do que se estivesse no quarto de um rei. E
como fizeram jeito as mantas.
Na
manhã seguinte, pelas 6h da madrugada, os burros começaram a anunciar o dia
zurrarando sem parar. Como eram 20 e estavam dentro do cural juntamente com as
pessoas, tornou-se impossível que alguém continuasse a dormir. Lá se levantaram
todos, puseram água a aquecer para lavar a cara e também para fazer um café
turco. Mais broa de milho, chouriço e queijo de ovelha que ia nos alforges dos
burros mas, desta vez, também havia uns ovos acabadinhos de cozer “Oferta do
estalajadeiro”.
–
O Sr. Dessilva é um autêntico anjo que nos apareceu. Olhe aqui, olhe aqui Sr.
Dessilva – apontando para uma das pessoas – Veja aqui o Joaquim que ontem
estava quase morto, veja como ele já arrebitou, está como novo, diz que não se
lembra como veio aqui parar, a última coisa que se lembra é de ter passado o
buraco no muro da aldeia!
–
Bondi dia Joaquim, realmente ontem estavas mais para lá do que para cá mas não te
envergonhes que é próprio da doença das alturas. Vai-se acumulando líquido nos
pulmões e no cérebro e, se a pessoa não descer, acaba por morrer afogada. Mas eu
também sabia que, depois de descermos e deixando passar uma noite bem dormida,
isso ia ao sítio. Meninos, vamos apressar que ainda temos uns 50 km até à
cidade e temos que chegar lá no máximo às 18h pois às 20 h passa o comboio que
nos há-de levar a Amsterdão e precisamos de tempo para organizar a compra dos bilhetes.
–
Mas o Sr. Dessilva vai connosco para Amsterdão? – Perguntou o António.
–
Eu não pensava ir, como te disse, tinha planeado esperar aqui que os carregadores voltassem de
vos levar à cidade e, nessa altura, retornar à aldeia com eles. Mas, vendo o
que aconteceu aqui, vocês não vão conseguir chegar lá sem a minha ajuda, não
vão conseguir embarcar no comboio quanto mais passar a fronteira. Pode
ter custado muito atravessar a montanha mas o caminho ainda vai no princípio, é
que é mais dificil atravessar o precoceito das pessoas do que as agruras do
cume do monte. – Virando-se para as pessoas – Vamos lá meninos, vamos a
carregar os burros que está na hora de partir.
À
saida o sr. Dessilva ainda deu uma palavra ao estalajadeiro.
–
Agradeço-lhe muito a sua hospitalidade e espero que esta sua hospitalidade se
repita no futuro pois, se estes se mostrarem trabalhadores, ainda vou precisar
de levar mais.
O estalajadeiro acenou positivamente com a cabeça e apertaram a mão.
Capítulo seguinte (34 - O comboio)
O estalajadeiro acenou positivamente com a cabeça e apertaram a mão.
Capítulo seguinte (34 - O comboio)
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