Crime e Redenção
Pedro Cosme Vieira
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Ver o capítulo anterior (37 - O Navio)
38 – O problema
Depois de terminados os abraços, era preciso tratar das coisas práticas, primeiro
levar as pessoas ao alojamento, depois, tratar de arranjar roupa nova e, finalmente,
falar do trabalho. A ideia do Sr. Jonas e demais confrades foi que tinham que ficar
a viver no centro da cidade o que tinha o problema dos elevados custos das rendas.
Mas não havia alternativa pois, para integrar na comunidade estas pessoas habituadas
a viver no meio de um monte, não era aconselhável mandá-las para um subúrbio qualquer
de Nova York, com longas e demoradas deslocações diárias. Além disso, o Dacosta
financiou a viagem com 20000€ a pensar no lucro que teria no sub-arrendamento de
dois apartamentos que geria na Lower East Side. As 31 pessoas iam ficar num apartamento
com 4 quartos, uma sala, cozinha e uma casas de banho. O espaço era pequeno mas
o facto de ser bem localizado compensava a lotação excessiva.
– Na vossa nova vida o mais caro é o alojamento e, por isso, vão começar por
ficar aqui. É um pouco caro, este apartamento vai custar 1500€ por semana mas, sendo
central, vão poupar tempo e dinheiro em transportes. O problema é que isto não é
como a aldeia, aqui não podem fazer barulho!
Criou-se um burburinho entre as pessoas “Mas nós nunca poderemos pagar 1500€
por semana! São 50€ por pessoa cada semana, nós não vamos conseguir arranjar esse
dinheiro!”
– Vão conseguir pagar vão, 50€ por semana não é grande coisa. Como vêm já tem
móveis, nestes dois quartos ficam os homens e naqueles dois ficam as mulheres, 8
pessoas em cada quarto e ainda sobra um lugar.
– Isto está muito bem – disse o António – lá na aldeia não ficavam tantas pessoas
juntas mas as casas ainda eram mais pequenas e a construção era muito pior. Além
do mais, temos água corrente e electricidade o que, para o que estamos habituados,
é um luxo. E nós viemos para a América para trabalhar, não foi para viver em grandes
casas.
– Tio, como isto é um bocado apertado e como sou da família, penso que vou ficar
a viver em sua casa! – disse o Joaquim.
– Não pode ser Joaquim, eu bem sei que és meu sobrinho mas seria um desrespeito
para com os teus companheiros se tivesses um tratamento especial. O Dessilva escolheu-te
pelas tuas qualidades e não por seres meu sobrinhos. Por isso, tens que desenvolver
a tua vida da mesma forma que eles.
– Sabe tio, isso é uma injustiça porque está a pagar os estudos ao Rúben que
é seu sobrinho neto e eu, que sou sobrinho e estou aqui, sou tratado como um desconhecido,
isto é uma injustiça.
– Vamos terminar esta conversa que não nos leva a lado nenhum. O que interessa
agora é que precisamos dar umas voltas, vamos arranjar umas roupas e vamos tratar
do trabalho. Os homens vão trabalhar com o Sr. Levinstone que também é membro da
confraria.
O Levinstone era um sub-empreiteiro de construção civil que também financiou
o projecto da viagem com 80000€ e arranjou trabalho para os homens com a condição
de receberem 3,50 €/h, salário que era o valor aceite pelas pessoas quando ainda
estavam na aldeia mas bastante abaixo do que pagava aos outros trabalhadores que
andava nos 6,00€/h.
– As senhoras – continuou o Sr. Jonas – vão trabalhar para com o Sr. Goldman
em confecção de roupa. Como já lhes foi dito quando estavam na aldeia, irão ganhar
2,50€ por hora – O Goldman também tinha entrado com 80000€ e, por isso, também ia
pagar menos que o corrente no mercado que, para as mulheres, andaria nos 4,50€/h.
E podem trabalhar as horas que quiserem, se quiserem, podem fazer 12h por dia,
6 dias por semana.
O António começou logo a fazer contas e disse aos companheiros “Realmente, aqui
ganha-se bem, um casal que trabalhe 10h por dia, vai ganhar 360€ por semana o que,
retirando os 100€ para renda e 60€ para a comida e demais despesas, ainda vai poupar
200€!”
Na primeira semana tudo correu às mil maravilhas. O trabalho era razoável,
muito melhor que cavar campo, e a casa, apesar de ser pequena para 31 pessoas, era
confortável. E, realmente, no fim da semana, depois de pagas todas as despesas,
ainda sobraram muitas centenas de euros.
Na segunda semana começaram os problemas com o Joaquim que, vendo que os companheiros
de trabalho americanos ganhavam mais e que as rendas dos apartamentos semelhantes
eram menores, não parava de repetir “Nós estamos a ser explorados!”
– Joaquim, mas quando o Sr. Dessilva
falou em virmos para cá, para podermos vir teria que haver alguém que financiasse
a nossa viagem e arranjasse as cartas de chamada. Tua sabias as condições e aceitas-te-as!
Se as aceitaste então, sendo tu um homem honrado, tens que as cumprir! Durante 5
anos tens que aceitar estas condições e, depois, podes ir à tua vida – dizia-lhe
repetidamente o António.
– Tu não vales nada, és um zero à esquerda, um pau mandado, um velho, um falido,
um sem pai, o meu tio pode não me respeitar como sobrinho que sou mas, mesmo assim,
tu continuas a ser um zero.
A Ana, mulher do Joaquim, também o chamava à atenção “Joaquim, não faças barulho
que os vizinhos vão-se queixar e temos que sair daqui, shiu, shiu, está calado”
– Que nos mandem embora pois estão a viver à nossa custa. E tu também não prestas
para nada, estás vendida a esse António, o mais certo é seres amante dele, tu não
vales nada, não prestas para nada. E não vou mais trabalhar!
A mulher não se cansava de lhe dizer “Pensa nos nossos filhos que deixamos na
aldeia, lembra-te deles e das pessoas que ficaram lá” mas o Joaquim só dizia “Que
se danem, que se aguentem que eu também aguentei muitos anos.”
Com o passar dos dias, tudo começou a descarrilar, queixas e mais queixas dos
vizinhos por causa do barulho depois, vieram os roubos, em casa ninguém podia desacautelar
a carteira que o dinheiro desaparecia para ser gasto em álcool e em mulheres. Por
fim, começou a bater na mulher e a fazer desacatos e roubos na rua. O mais grave
é que o comportamento do Joaquim foi contaminando três ou quatro companheiros que
tinham a mente mais fraca, pessoas que na aldeia eram honradas e cumpridoras da
sua palavra mas que agora começaram a preocupar-se mais com as noitadas do que com
o trabalho. Na terceira semana, o todo foi tomado pela parte e os vizinhos começaram
a pedir para que aquele grupo de “malandros, desonestos e desordeiros” fosse despejada.
No Sábado, na missa, o Sr. Jonas aproveitou para dar uma palavrinha ao António.
– Amigo António, isto está a ir de mal a pior. Está tão grave que tive que mandar
uma carta ao Dessilva a dizer que não vou conseguir arranjar as cartas de chamada
para os que ficaram na aldeia à espera. Apesar de o problema estar em 3 ou 4 pessoas
e de a renda estar a ser paga, as pessoas daqui estão muito preocupadas com o evoluir
da situação.
– Mas Sr. Jonas, é o seu sobrinho, não sei o que mais possa fazer, tenho-o chamado
com insistência à razão mas ele não ouve ninguém, não vai trabalhar e estar continuamente
a tentar sublevar as pessoas! O Sr. Dessilva também me disse para pedir ajuda às
pessoas da confraria, será que o Sr. Jonas me pode indicar um caminho!
– O Dessilva viu em ti capacidade para resolver os problemas e eu, infelizmente,
também não imagino o que poderás fazer.
– Sr. Jonas, são 3 ou 4 pessoas, nós os outros vamos segurar as pontas, pagar
a renda e trabalhar para tentar compensar este problema até que se arranje uma solução.
Na aldeia, já tinham passado quase dois mês desde o dia em que os jovens partiram
da aldeia. Sendo que o Dessilva já deveria ter voltado à aldeia para recomeçar as
aulas de inglês e tratar da viagem do segundo grupo de jovens, nada disso tinha
acontecido nem havia notícias.
O Dessilva não voltava porque tinha receio de que a Júlia tivesse tornado público
que, afinal, ele era o Abel e que tinha matado o Alberto para poder roubar as ovelhas.
Se isso tivesse acontecido, nunca mais poderia voltar à aldeia. “Será que foi um
erro ter-lhe contado a verdade?” Pensava ele, “Mas talvez não porque, na madrugada
da partida, quando o meu olhar se cruzou com o da Júlia, ela disse Newman e não
Abel”. Por outro lado, tinha recebido a carta do Jonas a dizer que as cartas de
chamada estavam suspensas.
As pessoas começaram a ficar preocupados muito preocupadas. Será que aconteceu
alguma tragédia ao Sr. Dessilva? Será que aqueles jovens foram mesmo para ser vendidos
aos turcos? O Sr. Costa, como grande impulsionador da viagem, era talvez a pessoa
mais preocupada, dava voltas e voltas à cabeça na tentativa de encontrar uma forma
de ter notícias do Sr. Dessilva mas não via como. Como era normal, os grandes problemas
implicavam uma conversa com o Padre Augusto.
– Bom dia, Sr. Padre Augusto, a sua bênção.
– Deus te abençoe. Então, que te trás por cá, meu filho?
– Estou muito preocupado com o facto do Sr. Dessilva, já passaram 2 meses desde
que nos deixou e nem voltou nem mandou qualquer notícia, os pais têm-me perguntado
pelos filhos e eu não sei dizer nada. E o pior é que não faço ideia do que possa
fazer para inverter a situação.
– Pois eu também tenho andado a pensar nisso, as pessoas têm-me vindo pedir
para rezar por quem partiu. Claro que o mais fácil é pensar que Dessilva morreu
pelo caminho e que os jovens que escaparam foram vendidos como escravos mas tenho
a sensação que não é nada disso, é qualquer coisa que nos ultrapassa, aparecer de
repente como que caído do Céu e desaparecer outra vez de repente como levado pelo
vento, há aqui algo que nos está a escapar!
– Mas o que poderemos agora fazer? Já dei voltas e voltas à minha cabeça e não
vejo como posso trazê-lo de volta.
– Antes de me vires fazer esta pergunta, rezei muito e tive uma ideia muito
estranha mas também a questão é tão estranha que a solução vai ter que estar onde
menos esperamos. Eu tive a inspiração de que só a Júlia é capaz de fazer o Dessilva
voltar!
– Na Ti Júlia, a velhota?
– Exactamente, notei que entre o Dessilva e a Júlia há qualquer coisa inexplicável,
a forma como na primeira reunião da confraria ele olhou para ela foi muito estranha.
Depois, foi visitá-la várias vezes, ..., vais falar com ela que está ali a chave
do problema!
– Mas, Sr. Padre, com todo o respeito, o que tem a Júlia de especial?
– Essa questão não nos interessa. Sendo que não temos solução para o problema,
temos que a ir procurar numa pessoa que seja diferente de nós. Se não vemos a solução
nas árvores, temos que a ir procurar nas pedras.
E assim o Sr. Costa o fez, mesmo sem esperança de que a Júlia pudesse resolver
o problema, foi ao barraco procurar ajuda.
– Bom dia, Ti Júlia, venho cá a mando do Sr. Padre Augusto para ver se resolve
o problema do desaparecimento do Sr. Dessilva, se faz qualquer coisa que o faça
voltar para junto de nós. Confesso, que não tenho esperança que a senhora o consiga
fazer mas o Padre Augusto pensa que é a única pessoa capaz de o fazer, que sabe
qualquer coisa que nós não sabemos ...
– Bom dia Sr. Costa, eu não sei nada de especial mas, se o Espírito Santo disse
ao Sr. Padre Augusto que eu tenho a solução para a ausência do Sr. Dessila, só tenho
que me esforçar. Eu tenho estado a pensar e vou-lhe enviar uma carta.
– Uma carta?
– Sim, sim, uma carta, vou escrever uma carta que vai fazer o Sr. Dessilva voltar.
– Mas isso é impossível de dar resultado! Mas o que vai dizer essa carta?
– O Sr. Costa, por favor, ajude-me a escrever aqui uns dizeres e, depois, se
achar bem, envie-a ao Sr. Dessilva. Aqui vai:
Ex.mo Sr. Newman Dessilva.
Pensei muito na conversa que tivemos à beira do ribeiro e , agora, estou com
a certeza absoluta de que, naquele dia, o Abel morreu.
Júlia do Zenão
O Sr. Costa ficou estranho com a firmeza da Júlia e tentou contrariá-la “Mas
esta carta não faz sentido! Isto é uma conversa sem sentido!”
– Se alguém tiver uma ideia melhor, o Sr. Costa avance com essa ideia, senão,
meta esta carta ao correio. Se o Sr. Padre Augusto o enviou cá é porque o Espírito
Santo lhe disse que isto vai dar resultado.
– E para onde mando a carta?
– Mande para a morada que tenho neste papel, “Meester goudsmid Jacob, Jodenbreestraat, Amsterdam”, pode ter a certeza que
o Sr. Dessilva a vai receber.
– Bem, isto não vai dar em nada mas, como não tenho alternativa, vou mesmo ter
que mandar a carta e que Deus nos ajude.
Capítulo seguinte (39 - O acidente)
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