Crime e Redenção
Pedro Cosme Vieira
______________________
Ver o capítulo anterior (38 - O Problema)
39 – O acidente
A
carta não fazia qualquer sentido, a Júlia só poderia ter enlouquecido de todo, qual
o sentido falar num acontecimento de há mais de 40 anos de que o Sr. Dessilva
nem nunca havia ouvido falar? Mas, como não havia mais nada que pudesse fazer,
enviou-a nesse mesmo dia pelo Polícia Vieira. E, sendo 3 dias para lá e outros
3 dias para cá, no prazo de uma semana ficar-se-ia a saber se a carta tinha tido
algum efeito.
A
carta não parecia fazer sentido mas, de facto, continha informação privada
codificada, referia que o Abel morreu para dar lugar ao Dessilva. Assim, mesmo
o seu conteúdo sendo público, não era inteligível que não para a Júlia e para o
Dessilva.
Quando
o Dessilva recebeu a carta, compreendeu logo o seu alcance, afinal, a Júlia
guardou segredo, no julgamento da Júlia, o crime do Abel estava completamente
ultrapassado pela ida dos jovens para a América. “Está na hora de fazer as malas e de voltar à
aldeia” pensou o Dessilva.
Na
aldeia, vivia-se um agradável dia de primavera quando algo estranho apareceu a
descer o monte – Olhem lá em cima, olhem, olhem, uma pessoa vestida de branco!
Parece o Sr. Dessilva, é o Sr. Dessilva, o Sr. Dessilva está de volta – gritou
um dos porteiros. Realmente era o Dessilva acompanhado por um almocreve com o
seu burro.
A
notícia de que o Sr. Dessilva estava de volta espalhou-se rapidamente pela
aldeia como se fosse um fogo em seara seca pelo calor de Agosto. Assim, quando
o Dessilva chegou às portas da aldeia, já o esperavam centenas de pessoas que
batiam palmas e gritavam “Viva ao Sr. Dessilva.”. Naturalmente, o Dessilva
ficou comovido.
–
Sr. Dessilva, Sr. Dessilva, estou aqui – gritou a Ti Júlia do meio da multidão.
O Dessilva aproximou-se dela e abraçou-a o que causou um certo escândalo nas
demais pessoas. “Mas o que terá de especial esta bruxa?” murmuraram as pessoas.
Sendo já estranho o Dessilva, um senhor rico, fino, bem tratado, abraçar uma
mulher do campo já gasta pelo tempo e de aspecto andrajoso, o que causou mais
confusão foi o abraço ter durado longos segundos e, no final, o Dessilva ter
dito enquanto segurava as mãos da Júlia “Tive saudades tuas”. Para mais, sem
ninguém compreender o alcance das palavras, o Dessilva terminou dizendo “Começo
a sentir-me redimido” o que fez com que as lágrimas viessem aos olhos de ambos.
–
Diga-nos notícias dos nossos filhos, o que se passou? – perguntavam as pessoas
que se acotovelavam à volta do Sr. Dessilva.
O
Sr. Dessilva preparou-se então para dizer uma palavras às pessoas “As boas
notícias são que os nossos jovens chegaram em segurança à América e a maioria
está-se a adaptar bem, estão a trabalhar e a ganhar dinheiro. As más notícias é
que a viagem está atrasada porque algumas pessoas estão com problemas de
adaptação à nova vida. Mas não se
preocupem que estou de volta e tenho esperança de que tudo se vá resolver a
breve prazo. Ainda não receberam notícias pois as cartas poderiam ser
interceptadas, mas trago aqui as que os vossos filhos me enviaram para
Amesterdão, peguem lá e distribuam-nas.
Todos
queria saber qual era o problema de adaptação mas o Sr. Dessilva, por estar
cansado, disse que teria que ficar para depois. Só dizia “São problemas que o António vai resolver, agora
desculpem-me que tenho que ir descansar um pouco porque a viagem foi longa e
cansativa.”
O Dessilva
continuou a sua viagem até casa do Sr. Costa, sempre acompanhado e a conversar
com a Júlia. À porta de casa estava a Sr.a Celeste, a Menina Dulcinha e o Sr.
Costa.
–
Amigo Dessilva, chegamos a pensá-lo morto! Dê cá um abraço e entre que deve
estar cansado e a Sr.a Júlia também – disse o Sr. Costa– O Sr. almocreve, por
favor, traga as malas aqui para dentro. E tenho que agradecer à Sr.a Júlia por
ter escrito a carta.
–
Sabe Costa, foi difícil atravessar o monte no Inverno mas, se não seguíssemos o
conselho de irmos para Norte, nunca teríamos conseguido chegar ao destino,
tenham-nos prendido. E, mesmo assim, a viagem de comboio não foi nada fácil,
tivemos que ir numa carruagem de carga ...
–
Toda a gente sabe que, se não fosse o amigo Dessilva, a viagem tinha
fracassado. Mas então quais são esses problemas?
– As
coisas começaram por correr bem, as pessoas gostaram do alojamento e do
trabalho mas, com o tempo, o Joaquim começou a virar da cabeça e arrastou mais
algumas pessoas com ele, 3 ou 4 pessoas que começaram a faltar ao trabalho, a
fazer barulho e a roubar os companheiros, veja só, o Joaquim que aqui era um
jovem honrado e trabalhador, lá tornou-se malandro e ladrão. E, por causa deste
problema, suspenderam as cartas de chamada. Uma tragédia para os jovens que
estão aqui à espera!
–
Mas são notícias terríveis – disse o Costa – os nossos jovens estão tão
animados com a possibilidades de irem para a América que, agora, vai ser um
grande choque.
–
Eu não tenho solução para este problema mas tenho esperança que o António o resolva,
daqui não podemos fazer nada mais do que ter esperança no António. Quando
cheguei não disse nada às pessoas porque ainda temos que pensar o que vamos
fazer, o que achas Júlia?
–
Sr. Dessilva, obrigado por perguntar a minha opinião. Eu penso que não devemos
dizer nada, o Sr. Dessilva recomeça a ensinar inglês como se tudo estivesse
normal e, com o passar do tempo, logo veremos o que fazer. Esperemos que nos
próximos 6 meses o António consiga resolver o problema e, senão o conseguir
fazer, o Sr. Dessilva inventa um atraso qualquer. Vamos acreditar sempre que o
problema se vai resolver.
Na
América, era uma quarta-feira, quase 4h da madrugada. A barulheira já se ouvia
antes de terem aberto a porta. Entraram aqueles 3 que andavam, havia meses,
sempre juntos. Fizeram barulho como todos os dias mas, naquela madrugada, as
pessoas tinham atingido o estado de rotura. Levantaram-se todas, quatro homens
agarraram o Joaquim, outros três agarraram o Aires e bastaram dois para agarrar
a Órfã. O Joaquim praguejou mas o António pediu-lhe que fizesse um pouco de
silêncio para que ele pudesse falar, por favor, por amor a Deus, por memória
dos seus filhos e por respeito à sua mulher. O Joaquim continuou a berrar, a
praguejar, a insultá-lo a ele e a todas as outras pessoas. Estavam visivelmente
embriagados ou talvez sobre o efeito de alguma droga.
Como
estavam em Julho, com tantas pessoas dentro do apartamento, mesmo com as
janelas abertas, o ar era quente e abafado.
– Ouçam,
estamos a dar-vos a última oportunidade, nós pagamos-vos a viagem para que
possam retornar à nossa aldeia, pagamos a viagem de navio e damos 500€ a cada
um. Juntamos entre nós o dinheiro e não precisam mais de se preocupar com a
dívida que têm para com o Sr. Dessilva que nós tratamos de tudo.
–
Tu e esses que te acompanham não passam de mentecaptos, quem pensas tu que és
para me dizeres para eu voltar para a miséria? Volta tu e estes imbecis que te
acompanham e não nos aborreças mais – disse o Joaquim – Se estão incomodados,
se querem continuar a viver uma vida de servidão, se não são capazes de
desfrutar desta nova vida, ide embora, voltai todos para aquela miséria, enfiai-vos
naquela porcaria pois não vos vai ser diferente da vida que levam aqui.
O
António como que ia ficando com febre. A adrenalina ia subindo dentro do seu
corpo o que alterava o seu pensamento a ponto de, de repente, ter ficado sem
ver e ter começado a gaguejar. Parecia que tinha tido um ataque qualquer.
–
És um fraco, um covarde, não prestas para nada, até gaguejas, largai-me que não
estou mais para vos aturar – disse o Joaquim continuando a praguejas. Nisto o
António como que atingiu um estado de loucura, desatou a gritar e ficou
possuído de uma força que pareceu do outro mundo. Empurrou o Joaquim juntamente
com os 4 homens que o agarravam pelos braços até que chocou com o parapeito da
janela aberta. Já se ouviam os vizinhos a gritar dizendo que eram horas de
dormir. Nestes caos total, o António encostou o Joaquim ao parapeito e, com a
mão esquerda, empurrou a sua cabeça para fora da janela. “Atira, atira, se tens
coragem, atira-me pela janela fora. És um fraco, um covarde, foste feito para
obedecer e não para liderar, atira-me lá para fora seu covarde. Não sei o que o
Dessilva viu em ti, um morto-vivo.” Gritava o Joaquim com a cabeça já de fora
mais por vontade própria do que por causa da força que o António fazia. “Meu
Deus perdoa-me” gritou o António ao mesmo que flectiu as pernas e, com a mão
direita, apanhou o fundo das calças do Joaquim que puxou para cima com toda a
força que tinha. Como o Joaquim estava encostado ao parapeito, com este
movimento rápido foi projectado para o vazio. Só se ouviu “Háááá pummm.” Neste
momento, as pessoas ficaram em choque pela rapidez do movimento e pelas suas
consequências imediatas, o Joaquim tinha acabado de morrer estatelado lá no
fundo.
Fez-se silêncio durante alguns segundos e, decorrido esse pequeno tempo em que o tuda parecia movimentar-se em câmara lenta, o Aires e a Órfã começaram a
gritar “Assassino, assassino, vais morrer na forca por causa deste crime.” Num
movimento rápido, o António avançou para o Aires a quem caçou o cinto das calças com a mão direita. Depois de, com a ajuda da mão esquerda no cachaço, o obrigar a baixar a cabeça, puxou-o para o lado da janela até o encostar ao parapeiro.
Puxando para cima com toda a força cinto, projectou o Aires por cima do parapeito pela
janela fora. Mais uma vez, ouviu-se apenas “Háááá pummm” e já estavam os dois
mortos. Neste momento, a Órfã calou-se, olhou de frente o António que
estava encostado à janela a fumegar e, libertando-se dos homens que a seguravam
porque tinham ficado em choque, investiu contra o António de cabeça baixa como
fazem os carneiros. Mas o António, como que guiado por Deus, conseguiu-se
desviar enfiando a cabeça da Órfã pela janela fora. Nesse mesmo momento, baixou-se, apanhou-lhe uma das
pernas no tornozelo, levantou-o e também a atirou pela janela fora, “Háááá pummm”. De repente, voltou o silêncio
total que durou uns eternos segundos, estavam os 3 lá no fundo, mortos.
–
Meu Deus, o que é que eu fiz? – disse o António em voz baixa.
– Não aconteceu nada – disse alguém em voz firme e grave – Não aconteceu nada, o problema está resolvido. Agora vamos descansar que amanhã é mais um dia de trabalho, amanhã voltaremos a ser um grupo de pessoas honradas, sérias e trabalhadores.
Capítulo seguinte (40 - A oportunidade)
– Não aconteceu nada – disse alguém em voz firme e grave – Não aconteceu nada, o problema está resolvido. Agora vamos descansar que amanhã é mais um dia de trabalho, amanhã voltaremos a ser um grupo de pessoas honradas, sérias e trabalhadores.
Capítulo seguinte (40 - A oportunidade)
0 comentários:
Enviar um comentário