domingo, 31 de maio de 2015

8 - A revelação

Crime e Redenção 
Pedro Cosme Vieira
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Ver o capítulo anterior (7 - A penitência)  


8 – A revelação 
Como a Maria Zé combinou com a Dulcinha que só voltaria a casa quando tudo estivesse pronto para o funeral, depois da confissão decidiu ir para casa dos pais. Pelo caminho foi matutando na penitência proposta pelo Sr. Padre Augusto, “Mas se o Simeão morreu, já não há nada que possa ser feito, nada que o possa trazer de volta à vida. Por isso, não compreendo como ter mais 4 filhos me pode redimir deste pecado”. Assim que chegou ao casebre dos pais e viu a mãe à porta, vestida de preto para marcar o luto, disse “Mãe, o meu Simeão morreu e Deus nunca mo perdoará”.
– Minha filha, Deus há-de perdoar-te porque já nada podes fazer para o trazer de volta à vida. Bem sei que tens o teu coração apertado mas o que lá vai, lá vai. Vais ver que, com o tempo, tudo passa e tudo esquece.
– Mas mãe, fui eu que causei, mesmo sem o saber, esta tragédia. Porque ninguém me avisou de que o defumadouro era isto? Agora, nunca mais poderei ser perdoada porque o Simeão não pode mais ser trazido à vida.
– Dizes que ninguém te avisou porque não quiseste ouvir o que a Tia Júlia te disse. Agora tens que ter pensamentos positivos, fazer com que tudo o que aconteceu no passado fique no passado. A morte do Simeão já é passado e nada podes fazer para mudar esse passado. Se o Sr. Padre Augusto diz que a tua redenção passa por teres mais 4 filhos, só tens que acreditar nas suas palavras e cumprir a penitência que ele decretou, se estiveste implicada no fim de um cristãozinho, naturalmente que podes reparar essa perda tendo mais quatro cristãos. Agora pode-te parecer estranho mas, com o tempo, vais ver que a penitência é justa e equilibrada que mais não pode ter sido que não uma inspiração do Espírito Santo.
– Mas mãe, e o sofrimento do Simeãozinho, quem o pode reparar?
– Isso já sabes que ninguém. A morte não pode ser reparada porque é irreversível mas o que não tem cura, curado está. E a morte também não é assim tão grave porque todos nascemos condenados a morrer seja por uma causa ou por outra. Tens é que pensar que a tua criancinha, mais dia, menos dia, iria morrer da doença e que tu, no entretanto, não tinhas como a criar. O mais certo era morrer mesmo de fome ou de tifo e arrastar o teu outro filho Rúben com ele. Agora, tens que olhar para o futuro e reparar a tua falha junto dos que continuam vivos. Se o Sr. padre diz que essa reparação passa por teres mais 4 filhos, só tens que lhe dar cumprimento.
– Mãe, não me consigo convencer ...
– Então, vejo-me obrigada a revelar-te um segredo que me acompanha desde há muitos anos para veres como algo mau pode dar origem a algo bom. Repara bem no que te vou dizer: apesar de teres 8 irmãos, eu tive mais filhos mas que tive que matar por terem nascido com a doença.
A Maria Zé estava a olhar para o chão e, como que ferrada por uma abelha, levantou rapidamente o olhar – “Eu lembro-me de quando morreu aquela menina pequenina, também terá sido vitima do defumadouro?”
– Não, não me estou a referir a menina nenhuma, estou-me a referir ao Joaquim.
– Mas o Joaquim está vivo, o meu irmão Joaquim está vivo, morra lá ao fundo da aldeia, ainda esteve em minha casa não faz nem um mês, a mãe só pode estar confundida ou a querer indrominar-me.
– Não, não, não estou a confundir, esse Joaquim é outro. O que estou a falar já morreu, podes pedir ao Padre Augusto para te mostrar o assento do baptizado. Era um menino tão bonito, tão vivinho, com um olhar felino, era igualzinho ao teu pai. Nunca me passou pela mente que tivesse a doença mas, com o passar dos meses, foi ficando para trás, não se desenvolvendo como deveria ser. Vivia com o meu coração tão apertado porque pouco antes tinha acontecia uma tragédia à Júlia de que não te posso falar.
– Sabe mãe, eu sei dessa tragédia porque há pouco o Padre Augusto contou-ma e foi mesmo terrível.
– Pois então já deves imaginar o meu aperto. Quando comecei a desconfiar de que alguma coisa estava mal, fui consultar o Dr. Acácio que me disse logo “Tenho más notícias, a tua criança tem a doença. Custa-me ser eu a dizer-to e aperta-me o coração ver o teu sofrimento mas não há nada que a medicina possa fazer”. Fiquei arrasada, gritei, chorei, andei por esses montes desorientada. Como não saia da minha mente o que tinha acontecido à minha irmã, à tua Tia Júlia, fiquei tomada pelo medo de ver o teu pai a ser levado à loucura. Naquele tempo a miséria era ainda pior do que agora pelo que sabia que tinha que ser eu a resolver o assunto pois os homens dizem-se muito fortes mas, de facto, não têm fibra. Não disse nada a ninguém, pensei toda a noite no que haveria de fazer e, pela manhã, conclui que tinha que devolver o Joaquim ao Criador.
– Mas então, quer dizer que a Tia Júlia matou esse Joaquim da mesma forma que matou o meu Simeão?
– Não digas que a tua tia matou o Simeão pois ele morreu por causa da doença e muito menos teve algo a ver com o que aconteceu ao Joaquim. Realmente falava-se num defumadouro milagroso mas eu não acreditava em nada disso e, além do mais, não sabia quem o fazia. Naquele tempo eu era uma mulher tesa, não era mulher para empurrar para os outros o que tinha que ser feito por mim. De manhã cedo peguei no gigo com a roupa suja, pousei o teu irmão em cima, meti tudo à cabeça e fui ao ribeiro como quem vai lavar a roupa. Fui muito cedo para que não estivesse ninguém por lá. Quando cheguei ao ribeiro, peguei no teu irmão, virei-o de barriga para baixo e mandei-o à água, sempre a empurrar para baixo para que não viesse ao de cima.
– Ai mãe que coisa terrível me está a dizer, eu nem quero acreditar que isso aconteceu mesmo.
– Foi isso mesmo, afoguei-o com as minhas próprias mãos. O coitadinho ainda se debateu debaixo de água, lutou para salvar a sua tenra vida mas eu não o larguei. Eu rezava a pedir perdão pelo que estava a fazer mas aquilo tinha mesmo que ser feito. Foi uma questão de um minuto mas que me pareceu uma eternidade. Depois, foi ao fundo e eu fui ainda lavar umas peças de roupa de forma a ter a certeza de que a criança tinha sido devolvida ao Criador.
– Mãe, não conte mais que isso é terrível de mais, é de uma insensibilidade extrema, matar o filho com suas próprias mãos ...
– Não, tu tens que ouvir porque pensas que as coisas se resolvem por si, que caiem do Céu sem mais nem menos, que chamas alguém para fazer o que tu deverias fazer e depois sais a gritar que assassinaram a tua criança. Depois de calcular que a criança já estaria definitivamente morta, desatei a correr em direcção às casas a gritar “Socorro que a minha criança caiu ao rio”. Corri como uma desalmada com a esperança de que acontecesse um milagre que sabia ser impossível mas os milagres são isso mesmo, a alteração das Leis da Natureza criadas por Deus. Antes que chegasse às casas já as pessoas vinham de lá a correr “Onde caiu a criança” e eu apontei para o local onde a tinha afogado. Quando as pessoas a descobriram, a corrente já a tinha arrastado uns 20 metros. Gritavam “Rápido que ainda pode estar viva” mas eu sabia que já estava morta e bem morta. Houve uma pessoa que se atirou à água e lhe aplicou respiração boca-a-boca mas a criança não reagiu, estava mesmo morta. Alguém foi, no entretanto, chamar o Dr. Acácio que, quando chegou, disse logo que não havia nada a fazer. Chamou-me ao lado para me dizer em voz baixa “Eu não imaginei que isto acontecesse assim tão rápido e desta forma tão desumana, nunca pensei que fosses capaz desta atrocidade”.
– Mas mãe ...
– Eu digo-te o que lhe disse “Apenas corrigi o erro da Natureza. Se calhar pensou que eu era como a minha irmã, mulher de ficar à espera que alguém resolvesse os seus problemas, mas eu sou diferente, faço logo o que tem que ser feito, agora que está feito, acabou-se o problema.”
– Mas mãe, isso que fez não pode ter mais perdão. Não há nada que possa ter feito que reparasse esse pecado.

– Ai não, espera então até saberes a verdade toda e só depois é que podes dizer se eu fiz bem ou mal.

Capítulo seguinte (9 - A substituição)

quarta-feira, 27 de maio de 2015

7 – A penitência

Crime e Redenção 
Pedro Cosme Vieira
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Ver o capítulo anterior (6 - A confissão)


7 – A penitência
– Sabes minha filha, eu conheço a Júlia desde que ela era jovem e inocente, fui já eu quem a casou e quem lhe baptizou os filhos.
– Mas Sr. Padre, o Sr. deve estar a confundir pois ela nunca teve filhos, toda a gente sabe que ela nunca teve filhos, ela mesmo me disse variadíssimas vezes que nunca teve filhos!
– Deves pensar que eu estou a ficar cansado da cabeça pois sempre ouviste dizer isso mas teve filhos e logo quatro que eu baptizei naquela pia baptismal que está ao fundo da igreja, na mesma em que te baptizei a ti e ao teu Simeão. Naquele tempo já constava que alguém fazia o defumadouro para evitar a doença e, não sei se era verdade porque nunca falamos nisso, também constava que esse alguém era a minha própria mãe. Vê só como o mundo dá voltas, é que todos sofremos da mesma maldita doença e, no passado, seria a minha mãe que tratava disso. Ao longo da minha vida sempre pensei ser errado acabar com a vida desse inocentes e por isso, quando me fiz padre, decidi que o defumadouro tinha que acabar de uma vez por todas. O meu antecessor, o Sr. Padre Félix, disse-me para eu não mexer no assunto porque as consequências seriam terríveis, muito mais grave do que eu antecipava mas eu achava que era um pecado tão grave, que violava de forma tão grosseira o mandamento “Não Matarás” que comecei a pregar que em circunstância alguma poderia ser usado o defumadouro para decidir quais as crianças que poderiam viver e as que deveriam morrer, isso só poderia ser uma escolha de Deus. Na minha missão contra a prática, na preparação para o casamento obrigava os noivos a jurar perante Deus de que não iriam aplicar o defumadouro às crianças. Pensava eu que, com muita fé, Deus iria levantar a maldição sobre a nossa gente. Eu sabia que as pessoas faziam tábua rasa sobre o que eu pregava continuando a fazer o que sempre fizeram mas a Júlia, por ser uma pessoa de grande fé, aceitou as minhas palavras. O problema é que o primeiro filho nasceu doente. Veio com o marido falar comigo e eu disse-lhes para aceitarem porque era a vontade de Deus, que se tivessem fé, Deus haveria de curar a criança. Aceitaram as minhas palavras e, com dificuldades, foram-no criando até que veio o segundo filho que também nasceu doente. Eu pedi ajuda às pessoas mas elas responderam-me que “Cada um de nós tem que resolver os nossos problemas. Não vou, como o Sr. Padre diz, arder eternamente no fogo do inferno e, depois, ainda sustentar quem vai para o Céu. Que aguente como eu aguento.” Pensando que Deus não poderia estar sempre distraído, mandei-os ter o terceiro e depois o quarto mas todos nasceram doentes. Eu fiquei de rastos, como podia Deus fazer tal maldade? Na altura até perguntei ao Dr. Acácio se a ciência podia explicar o nascimento de 4 doentes seguidos ou se seria mesmo uma maldição de Deus e ele disse-me que era pouco provável mas que poderia acontecer, que a culpa seria da estatística e não da mão de Deus.
– Mas, Sr. Padre, será que ninguém sabe disso, de que ela teve 4 filhos? E que é feito dessas crianças? Ela é minha tia e eu nunca ouvi falar disso...
– Os mais velhos sabem mas, como, entretanto, aconteceu algo de muito terrível, eu decretei que pecaria gravemente quem dissesse uma única palavra que fosse sobre o sucedido, que iria arder eternamente no fogo do Inferno. As crianças foram crescendo mas nunca chegaram a caminhar, falar ou sequer a comer pela sua própria mão. Aquela mulher e o marido, que também era teu parente pois era primo direito do teu pai, tinham uma canseira indescritível. Criar, sem terem leira nem beira, 4 crianças com aquele nível de dependência era algo inimaginável pelo que, pensava eu, o destino deles só poderia ser o Céu.
– E o que aconteceu a essas crianças?
– Um dia, já teria o mais velhinho uns 10 anos, estava eu a dormir e ouvi um burburinho na rua, alguém a praguejar contra Deus, a dizer coisas que, de tão terrível, não as posso repetir. Eu vim à janela e vi a Júlia com um archote a dizer que se ia matar mas que antes iria pegar fogo à igreja e, mesmo ,matar-me pois não passava de um enviado do Demónio. Vesti qualquer coisa e fui lá fora com a Santa Cruz numa mão e a caldeirinha da água benta na outra para tentar tirar-lhe o Diabo do corpo. A Júlia era uma pessoa tão temente a Deus que aquilo só poderia ser obra do Diabo, tinha que estar possessa pelo Satanás. Abeirei-me dela, benzi-a e perguntei-lhe “O que se passa mulher de Deus, o que te aconteceu de tão terrível para estares assim, vai de retro Satanás” e atirei-lhe com fartura de água benta. “Ai Sr. Padre que o meu marido foi-se abaixo, cometeu uma loucura. Venha comigo rapidamente que eu já não sei o que fazer à minha vida. A minha cabeça vai explodir, alguém me mate pois Deus abandonou-me de vez.”
– Mas afinal o que lhe tinha acontecido? – Perguntou a Maria Zé.
– Calma que já lá vou. A Júlia foi a correr feita louca e eu fui atrás dela, com a língua de fora, rumo a casa dela, lá no fundo da aldeia. Quando cheguei lá já estava a clarear e vi um vulto dependurado na laranjeira que tinham à porta, era o marido que se tinha enforcado. “Que tragédia”, pensei eu, “e agora o que vai ser das crianças doentes?” O cão estava danado ladrando com uma intensidade como nunca tinha visto. Aquele ladrar era respondido ao longe por latidelas de outros cães um pouco por toda a aldeia e o uivo dos lobos no monte. “Entre Sr. Padre, entre para ver a extensão da desgraça.” Disse a Júlia.
– Mas o marido não tinha morrido num acidente qualquer?
– Calma que isso é tudo para abafar a verdade. Eu entrei na casa, entrei directamente na sala e, como não havia luz, apenas notei um cheiro estranho e que o chão estava muito escorregadio e com uma substância que colava aos meus sapatos. “Que porcaria por aqui vai, nunca pensei que a Júlia fosse tão porca”, pensei eu, “Júlia traz uma vela que não vejo nada”. Enquanto eu olhava para o chão, a Júlia veio do quarto com uma vela e aí reparei que o chão estava cheio de sangue, parecia um lago. Como eu estava a olhar para o chão, a Júlia chamou pela minha atenção “Olhe para aqui Sr. Padre, olhe para aqui, olhe para cima da mesa, veja como estão os meus anjinhos”. Olhei e tive um choque terrível. Sobre um lado da velha mesa estavam alinhadas as 4 cabecinhas, organizadas da mais velhinha para a mais nova e, do outro lado, os corpos das 4 crianças, também organizados do maior para o mais pequenino. Coisa terrível, parecia um talho, o marido tinha, com o machado de rachar lenha, cortado fora a cabeça dos seus filhos. Quando vi aquilo, deu-me tamanha volta ao estômago que pensei que ia morrer, que me ia sair fora tudo o que tinha cá dentro.
– Sr. Padre, mas ninguém soube dessa tragédia? Como é possível o meu tio ter matado os 4 filhos e ninguém o saber?
– Abafamos aquilo como pudemos. Dissemos que, durante a noite, parte da casa tinha ruído e que tinha matado todos os cinco. Que a Júlia tinha escapado porque tinha ido, naquele momento, à retrete e que, por ter sofrido a desgraça de ver os filhos e o marido mortos de uma só vez, tinha virado do juízo. Para que tudo parecesse verdade, naquele mesmo dia foram uns homens de segredo deitar abaixo parte da casita onde viviam.
– Então é por isso que a Tia Júlia vive naquele anexo que foi galinheiro. Coitada, nunca mais deve ter tido coragem para entrar dentro da casa.
– Fizemos o funeral enterrando todos os cinco na mesma cova, naquela campa cuja lápide refere o nome do marido dela. Depois, a Júlia virou mesmo do juízo, ficou semanas na casa paroquial, atada de pés e mãos para que não se matasse. Foram semanas em que só praguejou. Todos os dias fazíamos uma novena a ver se recuperava. Um dia, quando já não havia esperança, como por milagre, calou-se e voltou ao seu estado normal até hoje.
– Sr. Padre, isso foi verdadeiramente terrível. Agora compreendo porque a Tia Júlia é uma pessoa tão triste. Realmente, em presença disso, o meu problema não tem importância nenhuma, imagino como terá sido perder ao mesmo tempo o marido e todos os quatro filhos. Coitada, tinha-lhe tanta raiva e agora sinto pena dela, já compreendo porque, quando lhe fomos pedir para fazer o defumadouro, pediu a Deus para a libertar do fardo.
– E sabes minha filha, no fundo fui eu o culpado por pelo menos parte da tragédia. Se ela tivesse feito o defumadouro, seria certo que as crianças teriam morrido mas, morreram na mesma e, no final, a Júlia ainda teria marido e, quem sabe, teria tido mais filhos saudáveis. Ao pensar que estava a evitar um pecado grave, estava a causar uma tragédia muito maior na qual nem as crianças que eu queria proteger escaparam. O Sr. Padre Félix quis avisar-me e eu, por sobranceria, por pensar que sabia mais dos desígnios de Deus que ele, não ouvi os seus conselhos.
– O Sr. Padre fez o que lhe pareceu certo à luz das Sagradas Escrituras.
– Pois parecia-me que sim mas o resultado foi catastrófico. Desde esse tempo, sei que os defumadouros passaram a ser feitos pela tua tia Júlia. Era uma mulher atormentada por aquela tragédia que tomou essa missão como penitencia. Minha filha, quanto ao teu pecado, não compete ao homem julgar o seu semelhante, isso é tarefa que temos que deixar a Deus.
– Mas Sr. Padre, como posso eu ter perdão se, no fundo, sinto um certo alívio pelo que aconteceu? Como pode Deus perdoar-me se eu não estou arrependida? A única coisa que posso prometer é que isto nunca mais se vai repetir porque nunca mais terei filhos.
– Minha filha, primeiro tens que recordar que Jacó enganou seu pai Isaque dizendo que era o Saúl e que, mesmo sem nunca se ter arrependido, Deus lho perdoou a ponto de ter sido ele quem deu origem ao povo eleito. Depois, o teu futuro não está mais nas tuas mãos. No meu julgamento, mantenho que tens que cumprir o mandamento “Crescei e multiplicai-vos” que Deus ordenou a Adão e, depois, repetiu a Noé, pelo que a penitência vai ter que ser exactamente ao contrário do que estás a pensar. Como prova perante Deus de que não foi nenhum sentimento egoísta que te levou a desejar e a aceitar a morte do teu Simeão, tens que ir ao altar prometer a Deus que, em substituição do Simeão, vais ter mais quatro filhos, ouve bem, quatro filhos. Reza agora o Acto de Contrição e, depois, vai à tua vida.
Enquanto a Maria Zé recitava o Acto de Contrição, as lágrimas vieram-lhe aos olhos de alegria por o seu pecado, afinal, ter perdão aos olhos de Deus mesmo sem sentir arrependimento. “Criar mais 4 filhos vai ser difícil mas Deus há-de-me ajudar”. Enquanto rezava, o padre Augusto decretou, fazendo o sinal da cruz, Ego te absolvo a peccatis tuis in nomine Patris, et Filii, et Spiritus Sancti.

– Amen

Capítulo seguinte (8 - A revelação)

domingo, 24 de maio de 2015

6 - A confissão

Crime e Redenção 
Pedro Cosme Vieira
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6 – A confissão
A Maria Zé chegou à casa paroquial pouco passava das 10h30. Puxou o arame da sineta – tlim, tlim, tlim – e passado um ou dois minutos apareceu a criada do Sr. Padre, a Menina Encarnação.
– Bom dia Sra. Maria José, o que a traz por cá? Vejo que vem de preto pelo que não deve ser coisa boa.
– Sabe Menina Encarnação, o meu filho mais pequenino, o Simeão, morreu durante a noite e eu vinha cá para falar com o Sr. Padre e tratar do funeral. Já havia alguns dias que estava meio doente, não queria comer, ainda pensei chamar o Sr. Dr. Acácio mas como pensei que a doença não fosse grave e o dinheiro não gosta de aparecer lá por casa, adiei a coisa e agora, durante a noite, o meu menino morreu.
– Eu não tenho filhos mas toda a mãe quando tem um filho tem que se preparar para a eventualidade de o perder. A Sr. Maria Zé sabe que a vida é um constante apegamento às pessoas que amamos e despegamento quando as perdemos. E parece que Deus vê um certo pecado na felicidade do amor de mãe pois quanto mais alegria a mãe retira da sua criança, mais sofre quando Deus lha tira.
– É isso mesmo Menina Encarnação, estou aqui por dentro que não me aguento mas tenho que ir buscar forças onde as não tenho pois a vida tem que seguir em frente. Eu estive há pouco na casa do Sr. Costa e a Menina Dulcinha disse-me que se o sino tocasse hoje de manhã o funeral ainda poderia ser hoje, na missa das 18h. É que está calor e pode ser uma doença que ponha em causa a saúde pública.
– Eu imagino o que está a sofrer, imagino que quando morre um filho é um tempo de enorme desgosto mas, realmente, é preciso tratar das coisas práticas. Entre, entre e sente-se aqui que o Sr. Padre Augusto vem já, foi há igreja rezar pela salvação das nossas almas e tratar de uns assuntos de papeladas mas não demora. Entre que eu vou preparar uma limonada pois, neste tempo de calor, só faz bem e, depois, vou mesmo dar uma saltadinha à igreja a ver se apresso a coisa.
Naquele tempo de espera, a Maria Zé reviveu tudo o que se tinha passado na noite anterior. Como tinha lutado mas sem convicção e rezado mas sem fé na cura e na salvação do filho. Por causa dessa falta de convicção e por ter feito o contrato com a Tia Júlia achava-se muito culpada pela morte da criança. Mas, mais grave do que ter participado na morte, era não estar arrependida. No fundo, no fundo, estava conformada com o que tinha acontecido e até, em certa medida, contente e aliviada porque “não podia criar uma criança assim tão doente”. Não tinha orgulho no que tinha feito mas também não tinha vergonha. E se não estava arrependida como é que poderia ter o perdão de Deus? Estava mesmo condenada à perdição, afinal a ideia nobre de ter filhos, de dar cumprimento aos mandamentos de Deus, tinha-a condenado à perdição eterna, estava agora condenada a arder no eterno fogo do Inferno.
O Sr. Padre tanto pode ter demorado muito como pouco porque os pensamentos fizeram a Maria Zé perder a noção do tempo. Foi então que o Sr. Padre Augusto entrou na pequena sala de espera.
– Bom-dia Maria Zé, o que te traz por aqui minha filha? – Disse o Sr. Padre mal entrou na pequena sala.
– Abençoe-me Sr. Padre que venho aqui procurar o conforto dos Mandamentos de Deus. É que o meu filho mais pequenino, o Simeão, morreu-me durante a noite. E também venho pedir se pode marcar o enterro para ainda hoje, para logo à tarde. Disse-me a Menina Dulcinha que era o melhor que poderia ser feito por causa do calor que está. Sabe Sr. Padre, também estou com um peso na consciência porque não fiz o suficiente para evitar que a minha criança morresse.
– Por agora deixa-te disso da culpa pois precisamos primeiro tratar dos assuntos práticos. Oh Encarnação, vai a casa do Sr. Mariazinha dizer-lhe que item que r à igreja dobrar o sino para anunciar o funeral para ainda hoje e diz-lhe também para abrir uma cova para uma criança pequena. Depois, quando vieres, preparas a casula branca pois, sendo o funeral de um anjinho, merece a casula da inocência e da pureza. Maria José, vamos agora até à igreja para ouvir o que ias dizer mas agora sob a protecção do segredo da confissão.
A Igreja distava menos de cem metros da casa paroquial que foram percorridos em silêncio sepulcral. À frente ia o padre vestido com a batina preta, o chapéu preto e as mãos entrelaçadas com um terço de pérolas brancas atrás das costas. A Maria Zé perseguia-o a rezar avé-marias em pensamento. Chegados à sacristia, o padre meteu a chave à porta e abriu-a – “Aguarda ali que já lá te vou abrir a porta lateral da igreja” – entrou e fechou a porta novamente com duas voltas de chave. Ainda demorou lá dentro uns bons minutos, talvez a rezar junto do Santíssimo a pedir inspiração divina. Depois, abriu a porta lateral – “Entra minha filha, vamos para o confessionário” – Afinal aquele tempo tinha servido para vestir a alva.
A Maria Zé ajoelhou-se – “Abençoe-me Sr. Padre porque pequei por actos e omissões, por minha culpa, minha única culpa.”
– Deus te abençoe.
– Eu não posso ter perdão pois eu sou a responsável, por actos e omissões, pela morte do meu Simeãozinho.
– Deus compreende que na miséria em que vivemos nem sempre os país podem dar às suas crianças uma alimentação boa, Deus sabe e compreende.
– Mas Sr. Padre, a minha criança não morreu de fome ...
– Eu sei minha filha, eu sei tudo o que se passou ontem à noite em tua casa, eu sei que a tua Tia Júlia esteve ontem em tua casa para fazer o defumadouro à tua criança e que ela não resistiu.
– Mas como é que o Sr. Padre já sabe disso? Foi o Espírito Santo que lho disse?
– Não, nada, não foi nada disso, foi uma coisa mais terrena. É que a Júlia antes de ir a tua casa passou por aqui para rezar e para falarmos um pouco. Quando te ouvi dizer que a tua criança morreu durante a noite, somei dois com dois e descobri logo que essa tua criança não resistiu ao defumadouro. Sabes minha filha, vês que cá na nossa aldeia morrem muitas crianças, em cada 10 que eu baptizo, morrem umas 3 ou 4 antes de fazerem a comunhão. Deus deve querer que seja assim, se não é a fome é o tifo, se não é o tifo é o sarampo e se não é uma coisa nem outra, é o defumadouro, pelo que já estou habituado a estas tragédias.
– Mas Sr. Padre, o defumadouro não mata ninguém, o meu outro filhinho, o Rúben, também teve o defumadouro e não lhe aconteceu nada de mal. Não foi o defumadouro que matou a minha criança mas antes a Tia Júlia ter fechado a tampa da caixa da roupa onde tinha metido o meu filho juntamente com o fogareiro em brasa. Foi a caixa estar fechada que asfixiou a criança e o grave é que eu sabia que a criança ia asfixiar e não fiz nada para o evitar. Escondi-me atrás de uma esperança sem sentido de que iria acontecer o milagre da cura.
–Quando nascemos já sabemos que vamos morrer e se Deus permitiu que isso tivesse acontecido é porque queria a tua criancinha junto dele, tens que ter paciência. É sempre triste ver um filho morrer mas são os caminhos do Senhor para ver até onde vai a tua fé. Para ti é um sofrimento sem igual para para a tua criança, por esta hora já está no Céu.
– Mas senhor padre, eu não me fiz entender pelo que vou ter que ser mais clara, a minha criança morreu porque a Tia Júlia a matou e com a minha conivência. Não foi Deus que a chamou foi o meter do fogareiro em brasa numa caixa fechada juntamente com a minha criança. Não foi mais que uma Lei da Natureza, meter a criança com carvão a arder numa caixa fechada era certo que ela ia morre asfixiada e eu deixei que isso acontecesse. E isto não pode ter perdão, eu estou condenada à danação eterna.
– Mas minha filha vens aqui ser juiz ou ser réu? Vens aqui procurar perdão de Deus ou condenares-te?


Capítulo seguinte (7 - A penitência)

quarta-feira, 20 de maio de 2015

5 - A casa

Crime e Redenção 
Pedro Cosme Vieira
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Ver o capítulo anterior (4 - A preparação)




5 – A casa
O casebre era pequeno, 9 x 6 m2, com uma parede no sentido transversal usada para formar a dispensa onde estavam guardados 5 pipos de vinho, a caixa do pão com uma divisão maior para o milho e outra menor para o feijão e a caixa da roupa maior, cobertores, mantas e casacos para usar no Inverno. O quadrado que sobrava do casebre era dividido pela cumeeira numa metade que era a sala e na outra metade que eram dois quartos onde praticamente só cabiam a cama, uma caixa pequena para a roupa de vestir e um banco que também servia de mesinha de cabeceira. A sala tinha uma mesa formada por duas tábuas velhas, dois bancos corridos e, na parede, uma prateleira onde estava a louça em barro vermelho, seis pratos, outras tantas malgas e uma travessa, muita dela já costurada com arames enferrujados.
Fora da casa havia os anexos feitos em paus atados entre si e emassados com barro e palha. Eram a retrete, a cozinha e o galinheiro e, depois, a arrecadação para as batatas, o feno e as alfaias agrícolas e os currais do porco e das ovelhas. O casebre de um lado e os anexos do outro lado cercavam o pátio que, no seu conjunto, fazia a casa parecer uma cidadezinha muralhada em que o porteiro, um cão magro preso por uma corrente, ladrava ruidosamente, fosse dia, fosse noite, sempre que alguém passava por perto.
A menina Dulcinha meteu a chave à porta, abriu-a e entrou juntamente com o pai que levava debaixo do braço a urna com a roupa dentro. Com eles ia a Sra. Celeste para ajudar a lavar e a vestir a criancinha morta. O ambiente era de grande pobreza, as paredes escuras de nunca terem visto caiação. A criança estava no quarto, no seu bercinho de verga, rosadinha como se estivesse viva mas morta como já seria de esperar pois a Maria Zé não se ia enganar e o Milagre da Ressurreição do Lázaro só aconteceu uma vez na história bíblica. Logo a seguir chegou o Dr. Acácio.
– Bom dia. Está bom, Sr. Costa? Senhora e menina, então o que temos por aqui? – disse o Dr. Acácio.
– Sabe Sr. Doutor, é que a criancinha morreu de noite e, como quando morre uma criança a estes desgraçados aparece sempre o Polícia Vieira, como me pareceu haver uma certa duvida nas causas da morte, achei melhor chamar o Sr. Doutor. Venha ali até ao quarto que a criança está lá.
O Dr. Acácio entrou no quarto – “Mau, a criancinha está rosada o que não é bom sinal, o Polícia Vieira vai achar estranho uma criança morta estar rosada. Sabe menina, é que esta cor indica uma intoxicação com fumo o que, no Verão, é estranho. Vou ter que fazer alguma coisa para disfarçar esta cor de forma a poder escrever na certidão que morreu de doença gastrointestinal. Sra. Celeste, se faz favor, venha aqui lavar a criança.”
Com a criancinha lavada e seca, o Dr. Acácio foi à sua mala preta e tirou um boião com uma substância de cor escura azulada que parecia graxa para os sapatos. Com dois dedos foi escurecendo a cara e as mãozinhas da criança. Depois de estar num tom mais compatível com a morte, limpou as suas mãos com um lenço que também tirou da mala.
– Pronto, agora já está com a cor que eu queria, já parece morta. Vamos vestir a criancinha para eu ver se precisa de mais algum retoque. Sra. Celeste, antes de virem as pessoas ver a criança defunta é preciso fazer uma desinfecção geral da casa, pegar nesta roupa toda que teve contacto com a criança e mete-la numa barrela com lixívia. Não vá o diabo tecê-las, vou também afixar aqui um papel à porta a dizer que, como a criança morreu de doença contagiosa, os menores de 10 anos não podem entrar na casa. Menina Dulcinha, não se esqueça disto. – Virando-se para a menina Dulcinha – E o pagamento, está por sua conta Dulcinha?
– Está sim Sr. doutor – a Dulcinha, tirando do bolso uma pequena carteira, abriu-a e tirou duas notas de 10€ e outra de 5€ – faça favor Sr. Doutor.
Estando a certidão passada e o pagamento feito, o Dr. Acácio foi-se embora a pé e começou imediatamente a limpeza da casa.

– Sra. Celeste, estou a ouvir o sino da igreja o que indica que o funeral vai ser hoje. Tenho que ir rápido ao posto da polícia para tratar ainda de manhã dos papéis do enterramento, penso estar de volta dentro de uma horita. Fique a tratar de tudo e não se pode esqueça que, para receber as pessoas que vierem ao funeral, ainda é preciso fritar as pataniscas de bacalhau, encher 5 garrafões de vinho e fazer uma limonada para as crianças.

Capítulo seguinte (6 - A confissão)

domingo, 17 de maio de 2015

4 - A preparação

Crime e Redenção 
Pedro Cosme Vieira
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Ver o capítulo anterior (3 - O desgosto)




4 – A preparação
A Maria Zé ficou a gritar, inconsolável, absorvida pela dor e pela ideia de que tinha sido cúmplice de um crime de dimensão bíblica. Mas, com o decorrer dos minutos começou a alinhavar alguns pensamentos desculpabilizadores. “Só agora percebo porque as pessoas falavam no defumadouro como algo terrível. Em criança eu acreditava no que diziam, que as crianças que morriam eram anjinhos que Deus tinha colocado provisoriamente no meio de nós e que, naquela noite, tinha chamado de volta para junto Dele mas, afinal, agora sei que essas crianças, pelo menos algumas, morreram por causa do defumadouro. E, tanto quanto me recordo, ninguém foi presa por causa disso.”
Veio até à porta para apanhar a frescura daa madrugada e logo continuaram os pensamentos. “Pensando retrospectivamente, a velhota até tem razão. Quando lhe fui pedir para que evitasse ter que criar filhos deficientes, estava a rejeitar, de entre todos os milhares de anjinhos que tinha dentro de mim, os que eram doentes. E, realmente, ela não me disse que não nasceriam mas apenas que iria resolver o assunto da melhor forma possível. Que eu não iria ter filhos doentes para criar e, realmente, cumpriu o trato mas não da forma como eu tinha imaginado. É que naquele dia, ao dizer que não queria que nascessem crianças deficientes estava a dizer que não queria que o Simeão nascesse mas agora, depois de o ter dado à vida, nunca teria coragem de lhe dar fim. Qual a lógica de não querer que ele nascesse e, agora, estar triste por ele ter morrido? Se ainda hoje mo perguntassem eu diria que não queria que ele viesse ao Mundo porque não o poderia criar. A questão é que eu acreditei numa história de crianças. quiz acreditar no impossível, na ideia de que um simples defumadouro, mesmo que fosse com carvão da Terra Santa, iria evitar que os ovinhos com a doença fossem transformados em crianças. Mas, no fundo, eu sempre soube que isso era impossível. No fundo, apenas estava a ser covarde, a atirar para outra pessoa o problema que tinha que ser resolvido por mim mas que não conseguia enfrentar. Como fui injusta em lançar à Tia Júlia a praga do fogo do Inferno quando a sua vida, com o peso de todas as criancinhas que devem ter morrido às suas mãos, sei lá quantas, já deveria ser um inferno. Estou finalmente a ver que a Tia Júlia é uma vítima de todo este processo sacrificando-se pelos outros.”
Os pensamentos continuaram por longas horas intercalados com momentos de desespero pelo que só por volta das 9h da manhã, já o Sol ia alto, é que a Maria Zé tomou consciência de que tinha que ir tratar das consequências daquela noite. Provavelmente iria ser condenada a uma pena qualquer mas, pensando bem, já outras mortes tinham acontecido e ainda ninguém tinha sido castigado, talvez a chave estivesse em manter bico calado. Para publicitar o seu desgosto, vestiu-se com roupa preta e, depois, comeu um bocado de pão de milho com café frio feito de véspera e partiu para a casa do Sr. Costa a toda a pressa. Pelo caminho foi pedindo às pessoas que fossem avisar os pais e o marido do sucedido. Chegando a casa do Sr. Costa, bateu à porta suavemente porque o senhor era temperamental e não gostava nada de choradeira à porta de sua casa.
– Sr. Costa, sou a Maria Zé do Zenão. Não se aborreça mas eu preciso que me trate do funeral do meu Simeão que morreu durante a noite.
Aguardou um pouco em silêncio, sentada num dos três degraus que permitiam descer da porta para o nível do caminho, até que o Sr. Costa abriu a porta e, contrariamente ao que era seu costume, mostrou-se razoavelmente afável.
– Deixa lá isso mulher que acontece a qualquer um. Entra, entra, que é para isso que cá estou, entra para falares com a minha filha que vai tratar da papelada e da roupa. Vou-te dar um licorzinho e entretanto preciso saber o tamanho da urna, quem te morreu foi o Rúben ou o Simeão.
– Foi o Simeãozinho, o mais pequenino, só tinha 4 meses.
– Então, chega uma urna de 80 cm. Tens é que ter consciência que isto vai custar dinheiro, vai-te custar 200€.
– Mas Sr. Costa eu não tenho esse dinheiro, estou mesmo com dificuldades. Veja lá se me faz uma atenção. É que só tenho 75€ comigo.
– Deixa-te dessa conversa que isto dá despesa com o doutor, o padre, o coveiro e não nos podemos esquecer do Polícia Vieira que é um comedor. Vou ter que lhe dar qualquer coisa pois, assim que constar que te morreu a criança durante a noite, vai aparecer por aí como um abutre. O mais que te posso fazer é dares-me já esses 75€ e, depois, 10 mensalidades de 10€. Oh Dulcinha, Dulcinha, anda cá, estás a ouvir? Anda cá para tratares da papelada da criança da Maria Zé que “foi para junto do Pai”.
“Para falar do Oolícia Vieira”, pensou a Maria Zé, “é porque o Sr. Costa sabe que a minha criança morreu de causas não naturais mas vou manter o silencio pois é a minha única safa.”
A Dulcinha apareceu, era praticamente um criança, com uns 12 anos, mas a quem cabia, desde que a mãe tinha morrido de pneumonia havia poucos meses, a tarefa de fazer a roupa e tratar da papelada das criancinhas que morressem na aldeia. E, dada a mortandade, isso dava-lhe muito trabalho.
– Bom dia Sra. Maria Zé, é uma tristeza a sua criança ter morrido mas temos que ser fortes e andar para a frente. O meu pai vai tratar de fazer a urna e eu vou tratar do resto, é preciso avisar o Sr. Padre Augusto para tratar da cerimónia religiosa e o Sr. Mariazinha para tocar o sino e abrir a cova. Tenho ainda de tratar da certidão de óbito. Poderia ser o Sr. Padre a tratar disso mas, como a morte de uma criança levanta sempre problemas, o melhor é chamar o Sr. Dr. Acácio. Acha bem eu fazer uma roupinha toda em branco com uma asinhas? É o que se usa normalmente nos anjinho. Tenho aqui um pano de seda e penas, tudo vindo de Paris. Vai ver que fica muito bonito.
– Ai menina Dulcinha, o que me aconteceu foi uma tragédia. Nem sei o que me vai acontecer agora. É que a criança morreu em parte por meu desmazelo – cala-te burra, pensou ela.
– Vamo-nos esquecer da noite de ontem porque já nada se pode fazer para trazer a criança de volta à vida. E foi a senhora que a deu à vida, que teve as dores de parto, que lhe deu de mamar pelo que sabia, mais do que ninguém, o que era melhor para ela. Agora que está morta, tem que olhar em frente e lembrar-se do Rúben que precisa de si. Temos que olhar ao principio e ao fim e não ao que aconteceu pelo meio. Se há uns meses tinha um filho e hoje tem um filho, pelo meio tem que pensar que nada aconteceu. Agora tem que ser forte e não fazer como a mulher de Lot que olhou para trás e ficou transformada em estátua de sal.
Parecia estranho uma criança de apenas 12 anos ter aquela força toda mas, de facto, aquelas frases não passavam da repetição de uma cassete que tinha ficado na memória das conversas que ouvia da sua mãe.
– Dê-me agora a chave de sua casa, vá até à igreja rezar e aproveite para se confessar com o Sr. Padre que é uma pessoa muito sábia e compreensiva. Eu vou a sua casa com o Sr. Dr. Acácio e, depois das 13h, pode aparecer lá que já estará tudo pronto. Aproveite para pedir ao Sr. Mariazinha para tocar o sino ainda de manhã para que o funeral possa ser na missa de hoje das 18h e para abrir uma meia campa. É melhor fazer o funeral ainda hoje porque está muito calor e a criança morta pode tornar-se um problema de saúde pública.

A Dulcinha acompanhou a Maria Zé à porta e chamou por uma criança que andava por lá a brincar, deu-lhe meio euro e mandou-a ir dizer ao Sr. Dr. Acácio para às 11h ir ter a casa da Maria Zé pois era precisa uma certidão de óbito para uma criança que tinha morrido durante a noite. Voltou para dentro e agarrou-se à costura e, num ápice, aldrabou a roupinha com as asinhas que foi buscar a uma caixa de cartão. Depois, foi à oficina do pai e, estando a urna já pronta, forrou-a por dentro com pano também branco. Agora, era só pegar em tudo e rumar a casa da Maria Zé.

Capítulo seguinte (5 - A casa)

quarta-feira, 13 de maio de 2015

3 - O desgosto

Crime e Redenção 
Pedro Cosme Vieira
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Ver o capítulo anterior (2 - O defumadouro)




3 – O desgosto
Os meses correram rapidamente. Quando o Rúben começou a gatinhar já a Maria Zé estava à espera de outra criança que nasceu quando a primeira ainda mal caminhava. Nasceu outro rapazinho, o Simeão, pequenino mas já com muito cabelo preto, encaracolado. Como no primeiro filho tinha corrido tudo bem, agora já nem se lembravam de que o menino, um dia, teria de ir ao defumadouro. A criancinha foi crescendo mas notava-se que, relativamente ao Rúben, havia qualquer diferença. Chorava muito mais e, a mamar, deixava cair a cabecinha para o lado e para trás. Também, quando deitado de bruços não conseguia levantar a cabecinha. Mas não havia de ser nada pois a Tia Júlia tinha garantido que tudo correria pelo melhor. Garantiu a tia que, com o defumadouro, não iriam ter nenhuma criança doente para criar.
Quando o Simeão fez 4 mesinhos, lembraram-se de que o defumadouro estava para a chegar mas não deram grande importância à questão pois não passaria de mais um bocado de fumo e de umas rezas. E, realmente, passados alguns dias, lá apareceu em casa a Tia Júlia, novamente já noite fechada, com o berço velho, o fogareiro, o carvão, o alecrim, o incenso e a mirra “da Terra Santa”, tudo dentro do saco de serapilheira. Entrou e, sem mais nada dizer, repetiu que o Francisco tinha que ir passar a noite a outro lado qualquer mas agora também o mandou levar o Rúben. Depois, foi ver a nova criancinha. Olhou e repetiu tudo o que tinha feito há pouco mais de uma ano com o Rúben. Fez com que ele agarrasse os seus indicadores, puxou pela criancinha mas esta não conseguiu agarra-se. Repetiu a operação e nada. Pegou na criança pelo corpo e o corpo torceu-se para um lado com a cabeça meio morta. Deitou-a no chão e chamou, chamou, chamou e a criança mexeu os braços e as pernas de forma tão descoordenada que não conseguiu levantar a cabeça nem mover o corpo. “Meu Deus, o que me está a dizer? Será que estou a perceber mal ou estás mesmo a chamar este anjinho para junto de Ti? Vamos repetir tudo.” Pensou a Júlia e assim o fez, tornou a envolver os seus indicadores com as mãozinhas pequeninas do Simeão e tentou levantá-lo mas nada. Pegou nele fazendo de conta que o queria ver a voar e o corpo continuou mortiço como se fosse de borracha, com os braços caídos. Voltou a coloca-lo no chão e a chamar por ele, mas não houve resposta aceitável.
A criancinha começou a chorar a pulmões cheios. “Maria Zé, prepara-te para o pior pois estou a ver problemas no horizonte” disse a tia.
“Mas o que poderá ser o pior? Será que vai haver mais fumarada? Não estou a ver como a velhota me pode surpreender, está-se mesmo a ver que isto não passa de um teatro para fazer render ainda mais o peixe, provavelmente da outra vez achou que 10€ era pouco”, pensou a Maria Zé.
A Tia Júlia esvaziou a caixa da roupa, meteu a criancinha lá dentro que não parava de chorar, acendeu o fogareiro e encheu a casa com o fumo do alecrim, do incenso e da mirra e começou a rezar. “Meu Deus dá-me um sinal a dizer que estou enganada. Faz, como fizeste ao Lázaro, faz com que a criança ganhe vida nova”. Levantou-se e tentou que o Simeão agarrasse alguma coisa com as mãozinhas mas não conseguiu.”Vamos rezar em voz alta” e começaram as duas mulheres a rezar até que o fogareiro deixou de fumegar. Depois, a Tia Júlia pegou no fogareiro e colocou-o dentro da caixa da roupa onde estava a criança, tudo tal e qual como já tinha feito com o Rúben. Ajoelharam-se em frente da caixa e rezaram mais e mais com os olhos fixos no chão e com as mãos postas. A Maria Zé estava confiante pelo que olhava mais para as unhas do que ouvia as orações. Passados uns  três ou quatro minutos, a Tia Júlia levantou-se e, debruçando-se sobre a caixa, tentou novamente que a criança agarrasse os seus polegares mas não houve reacção. Depois, levantou-se e pummm, fechou a tampa da caixa, com a criança e o fogareiro lá dentro.
A Maria Zé tinha estado, até aquele momento, totalmente desconcentrada, olhando para as unhas estragadas e para as mãos calejadas ao mesmo tempo que pensa com os seus botões que o defumadouro não passava de um ritual pagão para afastar os maus espíritos, sem qualquer importância, que não compreendia como alguém lhe poderia dar importância. Mas quando a Tia Júlia fechou a tampa da caixa, aí foi como se uma bomba tivesse rebentado dentro da sua cabeça.
– Meu Deus, meu Deus, Tia Júlia  o que está a fazer? – Levantou-se rapidamente e tentou abrir a tampa mas não conseguiu porque a Tia carregava-a para baixo com ambas as mãos, descarregando todo o seu peso. Além disso afastava a Maria Zé com o corpo que, apesar de parecer franzino e gasto, afinal tinha muita força.
– Deus me acuda, Tia Júlia o que está a fazer? Abra a tampa da caixa que a minha criancinha vai ...
– Calou – gritou a Tia Júlia – prometeste que assumirias todas as consequências do trato, que nada dirias nem nada perguntarias. Porque gritas agora? Será que perdeste a fé? Aguarda que se faça a vontade do Senhor.
– Mas, mas, mas, mas, mas, a minha criancinha vai ...
– Calou – gritou outra vez a Tia Júlia, agora em voz bastante mais alta – a criancinha vai cumprir o seu fado, vai apenas ser cumprida a vontade que tinhas antes de ela ter nascido. Vamos fazer o tempo andar para trás, de volta àquele dia em que me foste pedir ajuda porque não querias ter filhos doentes para criar. Se naquele dia disseste que não os querias, agora, porque já sabes que uma dessas crianças é o Simeão, porque te importas tanto com o que lhe possa vir a acontecer? Agora é tarde, eu disse-te para não teres filhos e insististe, avisei-te que o defumadouro era terrível e sorriste como se fosse uma brincadeira de crianças. Tornei-te a avisar e disseste que prometias tudo perante Deus. Agora tens que assumir o preço dessa tua opção por mais elevado que ele seja.
Houve uma certa luta física entre as duas mulheres mas em que a Maria Zé acabou por se deixar derrotar, voltando  a ajoelhar-se. Então, as duas recomeçaram a rezar sem parar “Meu Deus, meu Deus, não abandones o Simeão, lembra-te do que fizeste ao Lázaro e ressuscita este menino inocente”. Entretanto, o choro da criança foi-se tornando mais fraquinho até que parou por completo. “Deve ter adormecido pois Deus não pode ter permitido que tenha morrido assim sem mais nem menos” pensou a Maria Zé. Foram horas a fio de oração até que os galos cantaram a anunciar a alvorada. “Vamos ver se Deus fez o milagre da cura”. Abriram a caixa e lá estava o Simeãozinho, quietinho, parecendo a dormir, rosadinho como se estivesse vivo mas estava frio, estava morto.
– Assassina, assassina, assassina do meu Simeãozinho. Vai acabar a arder no fogo eterno do Inferno porque o crime que acabou de cometer não pode mais ter perdão de Deus. Matar assim uma criança que não fez mal a ninguém, vai para o Inferno mas antes há-de apodrecer na cadeia.
Enquanto a Maria Zé praguejava, a Tia Júlia tapou a cabeça com o lenço preto que apertou por debaixo do queixo, tirou a criança da caixa de madeira que lhe serviu de leito da morte e deitou-a no seu berço de verga, meteu a caixa e tudo o mais no saco e, antes de se escapulir na escuridão, ainda teve tempo para dizer umas palavras.

– Aguenta mulher que isso logo passa. Como prometeste, vais manter o bico calado, não dirás uma única palavra sobre o que se passou esta noite e tudo correrá pelo melhor. Isto também aconteceu com os teus pais, com os teus avós, com os teus sogros e com muitas mais gente da nossa aldeia e nunca ninguém abriu o bico. Agora é preciso pensar nas coisas práticas da vida. Quando te passar essa histeria, vai falar com a menina Dulcinha, a filha do Sr. Costa, que vai tratar do funeral e resolver essas complicações todas em que estás a pensar. Vais ver que nada te irá acontecer, nada.

Capítulo seguinte (4 - A preparação)

domingo, 10 de maio de 2015

2 – O defumadouro

Crime e Redenção 
Pedro Cosme Vieira
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Ver o capítulo anterior (1- A anomalia)



2 – O defumadouro
Nos dias seguintes, a Maria Zé e o Francisco conversaram longamente sobre o problema do defumadouro e, em termos racionais, concluíram que um filho não passando de um resultado aleatório de entre milhões de possibilidades e podendo haver escolha a priori de entre esses milhões de filhos potenciais, todos os pais rejeitariam os que tivessem alguma doença grave. Então, parecia-lhes totalmente aceitável pedir à Tia Júlia que rejeitasse os filhos que pudessem padecer da maldita doença. O que a Maria Zé achava incompreensível era o drama que a Tia tinha construído à volta da questão. Se lhe parecia natural que, no meio dos milhares de filhos potenciais que carregava dentro de si, quisesse escolher os mais saudáveis, o que poderia haver no defumadouro de tão terrível? Só poderia ser teatro.
Passados dias de discussão não encontrara nenhum argumento contra a ideia de todos os pais gostarem de ter filhos saudáveis pelo que decidiram então dizer que sim, que se vinculavam ao que a senhora quisesse. Foram os dois, de mão dada pelo caminho que separava o casario à barraca da Tia Júlia, para assumir a decisão “Tia Júlia, queremos mesmo ter filhos pelo que lhe pedimos que faça o defumadouro às nossas crianças. Juramos perante a Tia Júlia e perante Deus que lhe damos carta-branca, não faremos perguntas e aceitaremos todas as consequências e guardaremos segredo sobre tudo o que se passar e acontecer.”
– Agora que disseram que sim, que se comprometeram a assumir em silêncio as consequências deste trato, quando a criança que ainda está para ser concebida fizer 4 meses, vou a vossa casa para lhe fazer o Defumadouro da Terra Santa.
“Mau” pensou a Maria Zé, “Mas depois de a criança nascer haverá alguma coisa que o defumadouro possa fazer?”
Passados dois ou três meses, a Maria Zé engravidou e, passados 9 meses, nasceu uma criança, o Rúben, que era um menino de pele morena, olhos grandes e muito pretos, muito bonitinho. Como tudo parecia estar a correr bem, com o tempo o pacto foi sendo esquecido até que, poucos dias depois de a criança ter feito 4 meses, já sendo noite escura, o cão ladrou e apareceu à porta um vulto vestido de escuro, com o lenço preto a tapar totalmente a cara, parecendo que não queria ser reconhecido por ninguém. Era a Tia Júlia que vinha fazer a visita que já estava programada há muito tempo mas que pareceu ser de surpresa. Trazia às costas um saco de serapilheira cheio de qualquer coisa. Mal entrou no casebre, disparou logo com voz tensa.
– Francisco, estás por aí? Levanta-te e vai passar a noite a casa dos teus pais e, amanhã, espera lá até que te chegue recado a dizer que podes voltar.
E o Francisco, como prometido, disse boa-noite e saiu sem nada perguntar “O que se irá passar” pensou ele enquanto fazia o caminho pela escuridão.
Depois, foi directa ao Rúben que dormia no seu pequeno berço de verga. Acordou-o, fez com que a criança agarrasse os seus indicadores e tentou levantá-la. A criança fez força e ficou dependurada como se estivesse de pé. Depois pegou nela pelo tronco e, como a fazer dela um avião, avaliou até que ponto a criança segurava a cabeça e mantinha o corpo direito. Deitou-a no chão e chamou-a de um lado e do outro a testar se a criança conseguia levantar e virar a cabeça e conseguiu.
– Graças a Deus, a criança está forte, está bem, pelo que estou a ver, vai resistir ao defumadouro.
“Resistir ao defumadouro? Mas claro que vai resistir pois o defumadouro não passa de um ritual sem importância” pensou a Maria Zé.
A Tia Júlia tirou da saca que trazia uma pequena caixa de madeira muito velha – “Também tu e o teu Francisco estiveram deitados neste berço” – um pequeno fogareiro de barro e uns poucos carvões de “Zimbro da Terra Santa”. Depois pediu à sobrinha que esvaziasse a caixa da roupa que estava na arrecadação. Deitou a criança nesse berço velho e meteu-a dentro da caixa da roupa que agora estava vazia. Acendeu o fogareiro com o carvão sagrado, queimou nele “Alecrim, mirra e incenso que também vieram da Terra Santa” que encheram toda a casa de fumo perfumado. Assim que a pequena fogueira deixou de deitar fumo, colocou o fogareiro dentro da caixa da roupa onde estava a criança.
– Agora vamos rezar pois o defumadouro precisa fazer efeito. Deixemos que tudo corra segunda a vontade de Deus, “O Senhor é meu pastor, sei que nada temerei, Ele guia o meu andar, sem medo avançarei.”
Repetiram este salmo e mais rezas vezes sem conta, rezaram, rezaram e rezaram, mais de uma hora, até que o fogo se extinguiu porque todo o carvão se tinha reduzido a cinza. Já passava da meia-noite, altura em que a Tia Júlia disse “Graças a Deus que a criança resistiu. Agora cria-a com todo o amor que tiveres pois esta criança está livre da maldição.” Meteu o berço e o fogareiro no saco enquanto repetia “Bem-aventurado todo aquele que Nele confia”. Nesses entretantos, a Maria Zé meteu-lhe uma nota de 10€ no bolso do avental. Assim que terminou a arrumação, sem mais nada dizer, a Tia Júlia saiu porta fora para a escuridão de forma a que mais ninguém a visse. Desta vez, nem o cão ladrou.
– Obrigada – disse em voz alta a Maria Zé na direcção da Tia Júlia que já tinha desaparecido no escuro. “Afinal, o defumadouro não tinha sido assim tão terrível como tinha antecipado, só não percebo o porquê de tanto drama”, pensou a Maria Zé.
Mal o galo cantou, a Maria Zé levantou-se e decidiu ir a casa dos sogros avisar o marido de que poderia voltar para casa. Ainda sem nada comer, pegou no Rúben, atou-o à volta do corpo e meteu-se a caminho que era pequeno. 
O Francisco tinha 4 irmãos, o que era pouco se comparado com a média da aldeia, mas isso não resultava de a mãe ter tido poucos filhos mas antes de muitos deles, talvez uns 7, terem morrido por causa da miséria, “De fome, doença e tifo”, como era normal na aldeia do Monte. Mesmo sendo relativamente poucos irmãos, como dois deles, já casados e com bastantes filhos, continuavam a viver com os pais, dormindo nuns pequenos barracos de madeira que construíram anexos à casa, à mesa havia sempre umas 20 pessoas. Quando a Maria Zé chegou a casa dos sogros já estavam todos a pé, prontos para comer o mata-bicho. A sogra tinha café acabadinho de fazer no lume, fartura de broa e banha de porco para a barrar e queijo “Podemos ser pobres mas aqui ninguém passa fome, vou ali buscar o queijo”.
Enquanto a sogra foi à arrecadação buscar meio queijo, no meio da algazarra daquela pequena multidão que mal cabia no cozinha, a Maria Zé disse em voz baixa “Francisco, correu tudo bem e, como tínhamos combinado, dei-lhe a nota dos 10€.”
– Ainda bem. Agora, depois do mata-bicho, vou trabalhar e à noite falamos mais em pormenor. 

Ver o próximo capítulo (3 - O desgosto)

quarta-feira, 6 de maio de 2015

Vou escrever um romance

Isto de criticar os esquerdistas. 
Parece que é proibido em Portugal.
Então, vou começar a publicar um romance.
Hoje vou publicar a introdução e o primeiro capítulo. Depois, todas as quartas feiras (e Domingos porque já tenho muitos capítulos) publicarei outro capítulo. 
No romance relativizo a moral misturando o bem, o mal, o arrependimento, a redenção e o perdão. 
O projecto nasce de um desafio que lancei ao Richard Zimler que não me conhece e que eu não conheço. Naturalmente, não somos amigos. Por acaso somos colegas de trabalho mas nunca nos cruzamos na vida. 
O Richard não aceitou o desafio o que me obrigou a avançar com o projecto.
Este post também vai servir de índice do romance pelo que, semanalmente, vou acrescentando uma linha.
Espero que gostem.


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Crime e Redenção
 Pedro Cosme Vieira
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1- A anomalia
2 - O defumadouro
3 - O Desgosto
4 - A preparação
5 - A casa
6 - A confissão
7 - A penitência
8 - A revelação
9 - A substituição
10 - O Almoço
11 – A multiplicação
12 – O foral
13 – O cortejo
14 – A existência
15 – A recusa
16 – A operação
17 – O ataque
18 – O pedido
19 – A resposta
20 – A carta

1 – A anomalia

Crime e Redenção 
Pedro Cosme Vieira
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Algures na Europa, faz agora um pouco mais de 150 anos, um pequeno povo foi massacrado e expulso do local em que habitualmente vivia por ser portador de uma doença qualquer. Os sobreviventes desse crime passaram a viver num monte agreste propriedade do Arquiduque e, desde então, mesmo vivendo com privações e pesados impostos, conseguiram crescer, multiplicar-se e começar a colonizar o mundo. No entanto, mesmo usando como escala o que aconteceu há 150anos, um crime de dimensões inimagináveis está prestes a acontecer.
O bom desta história é que todo o crime pode ser redimido. Ou talvez não.


1 – A anomalia
A família da Maria Zé era portadora de uma anomalia talvez genética que fazia com que os filhos pudessem nascer com uma doença muito incapacitante. Por causa dessa possibilidade, apenas teve como pretendente o Francisco, um primo muito chegado, e que também era portador dessa doença maldita. Mas, como só se poderiam casar se se comprometessem a dar cumprimento ao mandamento “Crescei e Multiplicai-vos”, a decisão quanto a casar teria que ser muito ponderada . Mas os vizinhos diziam-lhes que, “Se outras pessoas se casaram e tiveram filhos saudáveis, também vocês se podem casar e ter filhos saudáveis desde que façam o “Defumadouro da Terra Santa”.
O Defumadouro era um estribilho que ouviam desde que eram crianças, “Vocês nasceram saudáveis porque os vossos pais fizeram o Defumadouro da Terra Santa”, mas que nenhum adulto conseguia explicar. Quando surgia a pergunta “Mamã, o que é o Defumadouro da Terra Santa?”, os adultos desconversavam ou diziam “Quando as pessoas da nossa aldeia querem ter filhos, para afastar a maldição têm que fazer o Defumadouro. Quem fizer o Defumadouro não vai ter filhos deficientes mas só vais compreender isso, o que quer dizer ‘não vais ter’ quando Deus quiser que tenhas filhos”.
Estando casados de fresco e tendo, segundo as palavras do padre Augusto, a obrigação de ter filhos, começaram então a fazer umas investigações pelas pessoas aldeia. Muito em segredo todos diziam o mesmo, “Falem com a vossa tia Júlia mas não digam que fui eu que disse o nome dela”. Então, não fosse engravidar antes do defumadouro, um dia a Maria Zé e o Francisco foram ao casebre da Tia Júlia que era irmã da mãe da Maria Zé e prima do Francisco.
A vida da Júlia tinha sido trágica. Primeiro, tinha casamento marcado com o Abel, um jovem muito querido por toda a gente, inteligente e trabalhador mas que, nas vésperas do casamento e ainda jovem, foi assassinado por ladrões de gado que vieram do Vale. Ficou anos de luto que, com muita dificuldade, conseguiu ultrapassar e aceitar casar-se com um primo em segundo grau da parte do pai. Se o casamento aconteceu, poucos anos depois, o marido morreu num acidente estúpido qualquer que ninguém consegue explicar. Nunca chegou a ter filhos e agora, com um pouco mais de 60 anos, vivia só, já fora da povoação, numa pequeníssima barraca que, em tempos, tinha servido de galinheiro. Os seus poucos rendimentos vinham das suas 5 ovelhas e 2 cabras e do trabalho agrícola que as suas poucas forças ainda lhe permitiam fazer. A sua pobreza era tanta que o foral que tinha que pagar anualmente ao Arquiduque era conseguido por um peditório entre os familiares mais próximos.
Havia algo de estranho em volta da Tia Júlia, apesar de estar sempre presente nas conversas, ninguém a queria por visita. Quando algo corria mal, por exemplo, uma ovelha desaparecia no monte, a chuva tardava em aparecer ou o vinho azedava no pipo, havia sempre alguém que dizia, “Antes isso que uma visita da Tia Júlia”.
Os recém casados decidiram então falar à mulher que ainda era sua parente chegada. Um dia, ao fim da tarde, foram os dois a sua casa, melhor dizendo, barraca. Como não a encontraram na barraca, chamaram por ela em voz alta que respondeu lá do meio dos pés de milho onde estava a trabalhar.
– Quem chama por mim?
– Boa tarde, Tia Júlia, sou eu, a sua sobrinha, a Maria Zé.
– Ai a minha sobrinha que não vejo desde pequenina, já aí vou – pousou o que estava a fazer e lá foi no seu vagar. Apareceu toda vestida de preto, com cabeça coberta por um lenço também preto que amarrava por baixo do queixo e por um grande chapéu de palha para proteger ainda mais dos raios do Sol. Os longos anos de trabalho no campo já tinham feito os seus estragos principalmente nas costas pelo que caminhava com uma visível inclinação do corpo para a frente e os dentes já tinham ido todos à sua vida.
– Boa tarde tia, é verdade que já não nos vemos há muito tempo mas estou a ver que está igual – um acto de misericórdia pois estava visivelmente muito mais envelhecida, quase cadavérica – este aqui é o Francisco. Como já deve saber, casei-me aqui com o primo Francisco, e, porque o padre Augusto diz que temos que ter filhos, na sua maluqueira “Uns 12 como teve o Jacob”, viemos cá para lhe falar sobre o Defumadouro que evita termos filhos com a doença.
A senhora ajoelhou-se, olhou para o Céu e começou a rezar em voz alta “Liberta-me Senhor deste fardo que tenho carregado ao longo da minha já longa vida” – é que naquela miséria, não era frequente uma pessoas ultrapassar os 60 anos de idade. – “Indica outra alma para assumir esta ingrata missão pois eu já estou cansada de sofrer.”
O casal ficou admirado da reacção da senhora e a Maria Zé avançou com umas palavras de conforto“Tia Júlia não desespere que nós só estamos aqui para lhe pedir que nos faça o Defumadouro às crianças, é só um fumosito.”
– Mas vocês não sabem da maldição que a nossa aldeia carrega? Não será melhor optarem, como eu fiz, por não ter filhos?
– Sim tia, já ouvimos falar disso mas o certo é que, muita gente fala da doença mas nós vemos que ninguém tem filhos doentes. E nós não somos diferentes dos outros, nós queremos mesmo ter filhos não só para respeitar os mandamentos de Deus mas também porque não queremos acabar os nossos dias sós e abandonados como a Tia Júlia – A Maria Zé vendo a expressão de tristeza na cara da tia teve um imediato arrependimento –desculpe a minha franqueza que não era para a entristecer. Se fosse para serem doentes, nós desrespeitaríamos o que diz o Padre Augusto e não tínhamos filhos porque, como somos pobres, não os poderíamos criar. Mas, como o povo diz que o Defumadouro que a Tia Júlia sabe fazer evita isso, pensamos, com a ajuda de Deus, estar em condições de criar duas ou três crianças.
– Mas têm que saber que o Defumadouro é uma coisa séria. Pensem bem pois, se se comprometerem comigo, terão que o assumir até às últimas consequências, sejam elas quais forem, sem nada dizer nem perguntar. Aviso-vos que, na minha mão, o defumadouro não permite que os filhos doentes vivam mas apenas isso, o defumadouro não é uma prática médica, não cura, apenas evita.
– Mas tia Júlia, é isso mesmo. Nós não queremos que Deus permita que tenhamos que criar crianças doentes.
– Ouçam bem o que me estão a pedir pois, depois, não podem vir dizer que eu vos enganei. Estão-me a dizer que não querem criar crianças com a doença.
– Pois Tia Júlia, é isso mesmo que lhe estamos a pedir pois nem teríamos como as criar.
– Mas fixem bem o que lhes vou dizer. Sejam quais forem as circunstâncias, nunca poderão rasgar o pacto que vão fazer comigo e com Deus, nunca, em circunstância alguma. O pacto que vai materializar a vossa vontade de ter filhos saudáveis e evitar que tenham que criar filhos doentes é irrevogável. Todo e qualquer filho que venham a ter terá que ser sujeito ao Defumadouro, todo e qualquer, ouçam bem, todo e qualquer.
– Mas tia, não lhe estamos a pedir nada de extraordinário, apenas que evite que venhamos a ter filhos doentes, nada mais.
– Não pensem que não é nada de extraordinário, o que me pedem é terrível. Vão agora para casa pensar e se, daqui a uns dias ou meses, mantiverem a vontade de ter filhos e os sujeitar ao Defumadouro, voltem cá para jurar perante Deus que vão respeitar o pacto até às últimas consequências. Pensem bem porque têm que me dar carta-branca e, aconteça o que acontecer, viver as consequências em silêncio, nunca mais dizendo nem perguntando nada a ninguém.

A Maria Zé achou estranho tanto drama mas, pensou, “Concerteza que é apenas para fazer render o seu peixe. Estas coisas do bruxedo têm que estar envoltas em algum dramatismo para que as pessoas abram os cordões à bolsa”. Sabendo que a senhora vivia muito mal, deixaram o litro de azeite e a meia dúzia de ovos que tinham levado e ainda meteram, discretamente, uma nota de 5€ no bolso do seu avental. Despediram-se e foram embora. 

Ver capítulo seguinte (2- O defumadouro)

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