domingo, 10 de abril de 2011

O Tono do Passador morreu

Eu só me desloco à faculdade às terças e quintas-feiras.
Como me acabou de dizer a Joana, tenho um bom tacho. Levo uma vida simples pelo que não preciso de me ralar. Mas esta sexta-feira fui lá a uma reunião (para não dizer que não) mas ainda vim almoçar a casa. Depois, fui até ao café e estava a ler, com calma, o JN quando reparei numa pequena notícia: “Ovar - Homem morreu atingido por um ramo de uma árvore. António Carvalho, de 31 anos, vivia sozinho em S. Vicente de Pereira.” Era o Tono, o meu caseiro. Coitado do desventurado que, para cúmulo da desgraça, morreu a trabalhar.
O Tono era filho do Passador. O nome do pai advinha de nos anos 1960/70 fazer transportes para a França numa furgoneta Ford Transit a cair de podre. Tinha oito filhos e, sendo uma pessoa agradável em público, em casa derretia a mulher e os filhos de porrada e de fome. Viviam todos numa casa degradada do Pinha do Cruzeiro, 6x8m2, a quem nunca pagou renda. é o número 72, estranho sabendo que nesse beco sem saída só existe mais uma barraca.

Eu conhecia o Passador da minha juventude vivida na aldeia.
 Primeiro, porque é uma terra pequena e, depois, porque ele vendeu, por um conto de reis, uma filha a uma cunhada de um primo meu que estava na América.
Os filhos, um a um, foram abandonando a barraca materna, depois foi a mulher porque não aguentava mais e, finalmente, num dia de inverno o Tono foi-se embora.
Eu herdei, da minha tia menina Maria Clara, uma quinta-parte de uma casita e de um mato em S. Vicente de Pereira. Quando estou pior, vou até lá cortar mato e, por distracção, guardo os fetos num coberto de duas chapas de zinco enferrujadas. Num dia de inverno os fetos estavam amassados. Será que algum animal estava a dormir ali?

Dias depois, eu estava sentado no meio mato, num cadeira de encosto de plástico, a pensar na vida e a gozar a natureza e vejo aproximar-se um calmeirão de 1.85m.
– Boa tarde sr. Pedro, eu sou o Tono do Passador e queria-lhe pedir se me arrendava ali a casa porque eu não tenho onde ficar.
– Mau... mas tu és de uma família de caloteiros, o teu pai nunca pagou renda.
– Sim, o meu pai era um roleta mas eu não. Para não acabar com ele, saí de casa. Eu não posso pagar muito mas pago qualquer coisa.
– Gastas o dinheiro todo em vinho e mulheres. Não te arrendo nada.
Eu tinha tido um caseiro, que está preso, que me tinha dado muitos problemas e eu estava farto. Mas ai, deu-me um flash:
– És tu que dormes ali no barraco no meio do mato?
– Quem? eu? Não, não, bem, não, quem? quem? eu? eu? não, não sei …
Mas ai rematou:
– Ai custa tanto dormir ao relento sr. Pedro.
Ena pá, o que foste tu dizer. Eu em casa com 5 cobertores, uma botija de água quente e tenho frio e este homem vive ao relento, no meio do mato, em pleno inverno, com um frio de rachar, e nem a isso se acha com direito. Foi como se uma marreta me tivesse acertado na cabeça. Fiquei comovido.
– Fica para ai e, quando estiver calor, falamos da renda.
Vim a saber que o Tono estava a trabalhar para o Costeira nos pinhais, um primo meu a quem a minha mãe chama Papordão, e que ganhava 120€ por semana. Nem caixa, nem seguro, nem férias, nem nada. E que a mulher do Paralta, o meu colega de comunhão orelhudo, lhe lavava e passava a roupa por caridade.
O Tono viveu 20 meses na minha casita.
Nunca pagou renda, água ou electricidade. Como eu já tinha pago mais de 1000€ em água e electricidade, em Março obriguei-o a dar-me 480€. Pediu-os adiantados ao patrão. Na quinta-feira foi almoçar à Lígia com o Quim Soleiras, meu amigo, outro falido, e disse-lhe que no sábado me ia dar mais 80€. Morreu uma hora depois, atingido na cabeça por um ramo de um eucalipto. Hoje, domingo, fui a S. Vicente e tudo o que o Tono possuía nesta vida estava à porta de minha casa: dois pares de calças de ganga, quatro T-shirts, dois pares de cuecas, uma sweet-shirt, uma bicicleta e um balde de plástico. Coisa chocante, comovente.
Este post custou-me a escrever mas o Tono merece-o.
Qual herói de Fukushima, o Tono deu a vida para eu puder ter papel na secretária a um preço irrisório. Todos os dias, pessoas dão a vida para pudermos ter um país onde a CP, a REFER, o Metro, etc. dão milhões de euros de prejuízo e, mesmo assim, estão sempre em greve. Dão a vida para que o governo se pavoneie e se gabe que o nosso país é líder nas energias renováveis, nos TGV, nas pontes, nas auto-estradas, nos doutoramentos.
Nós, os escolarizados, urbanizados e com bons tachos, não podemos, com o nosso egoísmo, permitir que as vidas destes desafortunados se esfumem em PPPs, TGVs, OTAs, e outros projectos megalómanos.

Paz à tua alma pá.
Pedro Cosme Costa Vieira

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