domingo, 16 de agosto de 2015

30 - A facada

Crime e Redenção 
Pedro Cosme Vieira
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Ver o capítulo anterior (29 - A hora)    



30 – A facada
Como era a véspera da partida, era grande azáfama em toda a aldeia. Preparar os mantimentos, arrear os burros, despedir dos familiares que ficavam. O Dessilva também andou toda a manhã atarefado mas, depois do almoço, decidiu ir visitar a Júlia. Estava sol mas frio, como era normal no Inverno, com os telhados e os campos cobertos de uma camada fina de neve, um cheiro intenso mas agradável a fumo que saia pelas frestas das casas. Mas, naquele casaco americano não entrava frio. Lá foi andando no seu vagar como se estivesse a saborear pela última vez aquela paisagem. Quando chegou à casita da Júlia, chamou por ela “Júlia, Júlia, estás ai dentro?”
A porta abriu-se “Estou mesmo aqui, Sr. Dessilva, entre, entre, mas vai ficar cheio de fumo”.
Realmente, dentro da casa, era uma fumarada total. A casita que se reduzia a uma divisão pequena outrora própria para as galinhas, não tinha chaminés, apenas uma telha levantada, pelo que estava completamente cheia de fumo da fogueira que ardia encostada a uma das paredes. “O Sr. Dessilva sente-se neste mocho e mantenha a cabeça baixa para não apanhar tanto fumo”
– Boa tarde Júlia, este fumo tra´z-me à memoria quando era pequeno, estas tardes frias mas solarengas, estas carnes dependuradas a defumar, este cheiro a folhas de loureiro ...
– O Sr. Dessilva só pode estar a gozar-me! Como é que se pode lembrar disso quando nasceu na América? Não me diga que acredita nas reencarnações?
– Tem Razão Júlia, tem razão, estava já a delirar mas, em vez de estarmos aqui fechados a defumar, porque não vamos caminhar um pouco por ai que eu tenho que falar à Júlia uma coisa que tenho aqui guardada, vamos no nosso vagar como quem vai a namorar.
– O sr. Dessilva é uma maroto, quem é que ia agora querer namorar com uma velha como eu? Mas vamos então falar que o Sr. Dessilva é muito bom conversador e lá fora, mesmo com o frio, o tempo está agradável.
– Vamos então. Sabe que eu gostei muito daquela história de não ter acreditado na morte do Abel. Diga-me então porque é que nunca acreditou na sua morte.
– É que há coisas que não batem certo mas, ao fim de uns tempos, acabei por me calar pois vi que ninguém acreditava em mim, chegaram mesmo a dizer que eu estava maluca, cega pelo amor que lhe tinha. Mas vamos aos factos, primeiro, os cães tinham a coleira de espetos pelo que tinham que aparecer, o Abel nunca ia para o monte sem as meter nos cães e eu, nesse mesmo dia, vi que os cães saíram daqui com as coleiras. Depois, nunca apareceu o corpo nem a roupa. Terceiro, eu vi pelas pegadas que as ovelhas foram para o Norte e, exactamente no caminho que seguiram as ovelhas, estava o Alberto morto, com os seus cães a guardá-lo e os lobos não comeram nenhum dos cães do Alberto. Como é que o Sr. Dessilva explica isto? Como é que os cães do Abel desapareceram e os do Alberto ficaram lá a guardar o corpo?
– Realmente, isso não parece bater certo mas eu vou-lhe explicar o que eu penso sobre o que aconteceu. Quando começou o ataque, estavam no monte milhares de ovelhas e mais de cem pastores. O ataque começou ainda o dia mal tinha nascido e, realmente, tinha como objectivo o roubo das ovelhas. Mas, quando os atacantes foram avistados, os pastores fugiram cada um para seu lado com as suas ovelhas pelo que os atacantes só conseguiram cercar aqueles 3 pastores que apareceram mortos na zona do planalto. Depois, apesar de terem conseguido as ovelhas dos desse 3 pastores mais algumas que se tresmalharam dos outros rebanhos, talvez umas 200 ou 250, como não traziam cães nem eram pastores, não conseguiram mais do que matar algumas e fazer com que as outras fugissem pelo monte tresmalhadas uma para cada lado. No final, não conseguiram roubar nenhuma ovelha e foram-se embora de volta ao Vale.
– Mas então, se diz que os do Vale não roubaram as ovelhas, para onde é que foram essas 200 ovelhas? E ainda não explicou como morre o Alberto.
– Calma! O Jonas estava com o Alberto mais acima no monte, talvez uns 5 km acima, e viu tudo o que estava a acontecer. Como estava eu a dizer, como os atacantes não conseguiam juntar as ovelhas, acabaram por desistir e irem-se embora, foi quando foram avistas aqui da aldeia a regressar ao Vale.
– Até aí está tudo bem, realmente, quando voltaram não levavam ovelhas com eles, mas ainda não estou a ver como a história do Abel e do alberto encaixam ai. Se eles se foram embora e o Alberto e o Abel estavam 5km acima bem vivos, porque é que as ovelhas desapareceram, o Abel nunca apareceu e o Alberto apareceu morto?
– Avancemos mais um pouco, o Abel não sabia o que se iria passar pelo que, sendo um homem de coragem, entregou as suas ovelhas à guarda do Alberto, umas 50 ou 60, e disse-lhe “Foge para Norte, leva as ovelhas até ao outro lado do monte e espera lá por mim que eu vou tentar salvar os nossos colegas que estão a ser atacados”. Depois, o Abel chamou os seus 4 cães e correu monte abaixo para tentar socorrer os colegas que tinham sido apanhados mas, quando lá chegou, viu que já estavam mortos. Então, mais não podia fazer do que juntar as ovelhas que andavam extraviadas. Como era um bom pastor e os seus cães estavam bem treinados, mandou correr um por aqui, outro por acolá e conseguiu, ao fim de algum tempo, juntar quase todas as ovelhas que estavam vivas, conseguiu juntar mais de 200. Pensou um minuto e, como os atacantes podiam estar por ali escondidos à espera para o emboscar e o Alberto tinha caminhado para Norte, decidiu levá-las monte acima para se juntar com o Alberto e, assim, passar a noite no monte e voltar apenas no dia seguinte. O combinado era o Alberto parar com as ovelhas uns 10km dali, já do outro lado da cumieira pelo que o Abel começou a guiar as ovelhas para o local combinado para o encontro.
– Sim Sr. Dessilva, até agora concordo que tudo isso poderia ter acontecido mas ainda não compreendo como morreram e as ovelhas desapareceram. Mas, desculpe-me, agora notei que está sem o sotaque americano!
– É que eu aprendo línguas depressa. Morreram ou morreu? Mas afinal acreditas que o Abel escapou ou não?
– Acredito, acredito!
– Voltemos então à história. Então, o Abel caminhou monte acima e quando chegou ao outro lado da cumieira, ao ponto de encontro, já era noite fechada. Teve sorte em ser Verão senão não teria conseguido passar o monte e aguentar a noite lá no cimo, teria morrido congelado. Foi uma noite terrível porque não podiam fazer uma fogueira com medo de que os atacantes ainda estivessem no monte. Os lobos rondavam e atacavam as ovelhas pelo que, tiveram que lutar, juntamente com os cães, toda a noite contra as feras. Quando o dia nasceu estavam exaustos pelo que dormitaram um pouco cobertos com a manta que os pastores transportam sempre enrolada às costas.
– Sr. Dessilva sabe muito sobre os pastores, até sabe que eles levam uma manta às costas. Mas diga-me então como é que o Alberto morreu e o Abel, os cães e as ovelhas desapareceram? Será que os atacantes os viram? Mas como já sabe os atacantes foram vistos a voltar ao Vale logo depois do ataque pelo que, no dia seguinte, já não havia ninguém no monte. Por isso, a sua história não tem pés nem cabeça.
– Ouve então o resto. Realmente, nessa altura já não havia atacantes no monte e as pessoas da aldeia já andavam à procura dos pastores e das ovelhas desaparecidos. Mas, durante a noite, passou um pensamento negro pela cabeça do Abel, quando acordaram, já o Sol ia alto, o Abel disse “Alberto, nós estamos aqui no monte com mais de 300 ovelhas e, se calhar, os meliantes atacaram a aldeia e mataram toda a gente. A única coisa que podemos fazer para que o nosso povo não fique definitivamente perdido é levarmos as ovelhas mais para Norte, vendêrmo-las no mercado da cidade e, daí, seguir com a nossa vida em frente, partirmos para junto do Jonas. Daqui à cidade são uns 60 km, mesmo não podendo fazer o trajecto num dia, para mos na aldeia que existe uns quilómetros aqui à frente, depois, arranjamos alguém que nos a levar as ovelhas até à cidade.”
– O Alberto imediatamente de forma negativa “Não Abel, não podemos fazer isso, temos que voltar à nossa aldeia já pois, mesmo que os nossos tenham sido atacados, nunca terão matado todas as pessoas, haverá sempre feridos que precisam da nossa ajuda. Depois, assim que o Arquiduque souber que fomos atacados na magnitude que estás a imaginar, manda logo as suas tropas em nossa ajuda.”
Esta esperança de que haveria sobreviventes na aldeia não foi capaz de demover o Abel da sua ideia que continuou a insistir “Alberto, deixa-te disso, vamos para a frente com isto, levamos as ovelhas para Norte e vendêmo-las. Depois, eu sei que o Jonas está na Holanda, eu sei a morada dele, pegamos no dinheiro, apanhamos o comboio e vamos ter com ele e, depois, apanhamos todos o barco para a América. O Jonas disse-me numa carta que a América é a terra das oportunidades, que estão a receber as pessoas e que lá é a nova terra prometida, vamos para Nova York, vamos para a frente com isto, anda daí que ficas com metade do dinheiro que conseguirmos com as ovelhas.”
– E, Sr. Dessilva, e depois, o que aconteceu nessa sua história?
– O Abel continuou a insistir, insistir e o Alberto sempre a dizer que não a ponto de dizer “Antes morto do que vendido”. Nisto o Abel aproximou-se dele e disse “Alberto não me faças isso, vamos neste projecto” a que o Alberto tornou a responder “Antes morto do que vendido, tu não prestas.” Neste momento, o Abel agarrou-lhe o casaco pela lapela com a mão esquerda, depois, tirou o facalhão que transportava preso ao cinto na parte das costas e, com um movimento rápido, cravou-o directo ao coração do amigo.
– Não Sr. Dessilva, isso não pode ter acontecido assim, essa sua história é terrível de mais, recuso-me a continuar a ouvir essa hipótese. O Abel era sério, era incapaz de matar o seu melhor amigo, não, isso nunca poderia ter acontecido, nem que fosse um canalha, um desalmado, nunca ninguém mataria um amigo assim.
– Júlia, nunca digas nunca. Diz-me a Júlia, quando encontraste o Alberto, como é que ele tinha sido morto?
– Com uma facada no coração mas o Sr. Dessilva sabe-o porque eu já lho talvez tenha dito.
– Se não achas a minha história verosível, vou então continuar para veres que a verdade pode ser muito dura. O Alberto ainda ficou de pé por uns segundos e disse “O que me fizeste Abel? Parece que me deste uma facada, parece que me mataste.” Nisto o Abel disse “Perdoa-me Alberto, perdoa-me este crime que acabei de cometer mas é para bem do nosso povo, eu hei-de recompensar o nosso povo pela atrocidade que acabei de cometer.”
– “Nunca, este crime nunca terá perdão, não há nada no Mundo que possas fazer para que eu ou alguém te possa perdoar o que acabaste de fazer, este foi um acto de puro egoísmo em que puseste a tua felicidade à frente da minha e de qualquer outra pessoa do nosso povo.” Respondeu o Alberto. Nisto o Alberto caiu, ainda disse “Nunca” mas revirou os olhos e morreu logo a seguir. Então, o Abel pegou nos seus 4 cães e deu início à marcha para Norte. Ainda tentou chamar os cães do Alberto mas eles ficaram junto ao corpo já morto. Não foi fácil levar as 300 ovelhas nos 20km que ainda faltavam para a aldeia, foram feitos devagar porque as ovelhas queriam-se tresmalhar, com os cães sempre a trabalhar, a correr de um lado para o outro. Mas o Abel lá conseguiu chegar com as ovelhas à aldeia antes da noite cair, onde tinha previsto passar a noite. Ficou num curral do estalajadeiro e no dia seguinte contratou uns pastores dessa aldeia que o ajudaram a levar as ovelhas até à cidade. Uma vez lá, vendeu-as por bom dinheiro, por um pouco mais de 25000€.
– Isso não pode ter acontecido. Além do mais, não bate certo, ainda tem que explicar o que aconteceu aos cães do Abel. Onde ficaram os cães? Será que ele também os matou?
– Sim, sim, os cães tiveram o mesmo destino que o Alberto, foram sacrificados para que não houvesse o risco de voltarem à aldeia do Monte.
– Essa dos cães já me parece um remendo que o Sr. Dessilva precisou fazer.
– Não, não, foi mesmo assim que aconteceu. Depois, o Abel pegou no dinheiro e apanhou o comboio para Amesterdão onde se juntou com o Jonas. Nessa altura, o Jonas já era um ourives encartado mas, por ter nascido nesta terra de parolos, não lhe davam a oportunidade de mostrar o seu grande valor. Então, aceitou o desafio do Abel e foram os dois para a América, para Nova York onde, com o dinheiro das ovelhas, abriram a ourivesaria que hoje é um grande sucesso.
– Eu não me acredito em nada disso. Além do mais, sendo o Sr. Dessilva sócio do Jonas, se o Abel estivesse vivo e tivesse ido para a América com o Jonas, o senhor deveria conhecê-lo. O Abel também deveria ser sócio do Jonas e, tanto quanto disse até agora, esse sócio não existe. Ou terá o Jonas outro sócio de que o Sr. Dessilva nunca tenha falado?
– Não, não, Júlia, o Jonas não tem mais sócio nenhum, desde o primeiro momento que a ourivesaria tem apenas dois sócios, eu e o Jonas.
– Então, a sua história não tem qualquer aderência à realidade. Eu posso nunca ter acreditado que o Abel tenha morrido mas a verdade não é essa. Aconteceu alguma coisa, talvez algumas pessoas do Vale tenham levado as ovelhas para Norte e tenha vendido o Abel aos turcos como escravo, mas não é possível que ele tenha roubado as ovelhas e, ainda muito menos, que tenha matado o Alberto. Não me acredito em nada disso. Acredito com toda a convicção que, um dia, o Abel se vai soltar do cativeiro dos turcos e vai voltar à nossa aldeia.
– A Júlia vai já acreditar que tudo o que eu lhe contei foi a verdade, a mais pura das verdades. Agora que chegamos aqui à beira do riacho, olhe este cepo de um carvalho velho que já foi cortado faz talvez 20 anos, repare neste cepo.
– E o que tem este cepo?
– Imagine que o carvalho está aqui, há uns cinquenta anos atrás, imagine uma tarde de muito calor e este ribeiro com um fio de água a correr. Imagine que o Abel está descalço, sentado nesta pedra grande, com os pés mergulhados na água fresca e que a Júlia está encostada ao tronco forte do carvalho. Faça de conta que está encostada a esse carvalho que eu estou a refrescar os meus pés neste mesmo sítio.
– Pronto, Sr. Dessilva, já me estou a imaginar encostada ao carvalho que aqui havia. Vamos lá ver no que isto vai dar. Avance, avance que eu estou com curiosidade.
– Agora imagine-se nessa altura, com 11 ou 12 anos. O Abel roda sobre esta mesma pedra como eu estou a fazer agora, olha para a Júlia, levanta-se e dá-lhe um beijo, o primeiro beijo desse amor que os ligou até hoje. Depois, a Júlia empurrou o Abel e ele caiu aqui, como eu estou a cair. A Júlia desatou a correr por este caminho e o Abel ficou aqui deitado a olhar. Ali abaixo, a Júlia parou e olhou para trás e sorriu. Lembra-se disto, isto aconteceu ou não?
– Mas como o Sr. Dessilva sabe disto, quem lhe contou que isto aconteceu? Só eu e o Abel sabíamos que isso tinha acontecido. Será que alguém estava a ver e, agora, lho contou? Diga, diga, onde soube esta história, deixe de brincar comigo e diga logo onde soube esta história.
– Júlia, calma, calma, eu vou-lhe dizer como o soube mas a Júlia tem que me jurar segredo sepulcral. Jamais pode dizer o que eu lhe vou revelar, nem em confissão, nunca e a ninguém, vai ter que ir para a sepultura com a Júlia. Promete guardar segredo total sobre o que eu lhe vou dizer?
– Guardo, sim, guardo segredo. Toda a minha vida é um segredo pelo que prometo guardar mais esse segredo sepulcral que vem por ai.
– Então olhe para mim, olhe bem, imagine como eu seria há uns 40 anos atrás no dia em que o Abel morreu no monte, olhe bem – fez-se silêncio durante um minuto, dois minutos, três minutos .
– Não, não pode ser, é impossível, meu Deus, diga-me que não é verdade o que eu estou a imaginar, diga-me que eu estou apenas a ter um pesadelo.
– Sim, sim, pode ser e é verdade, o Abel libertou-se do cativeiro e voltou à nossa aldeia, o Abel sou eu.
Os olhos da Júlia encheram-se imediatamente de lágrimas. Ainda disse “Não pode ser, o Sr. Dessilva ser o Abel, não pode ser um ladrão, um assassino que matou o seu maior amigo” para logo perder os sentidos. O Sr. Dessilva deitou, com carinho, a Júlia de lado e, vendo que respirava normalmente e que estava quase a vir de volta a si,  afastou-se.

Próximo capítulo (31 - A partida)

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